29 de jun. de 2010

RECADO DO ZÉ

Rosario,

a estrela que vemos agora é Gérard Philipe brilhando intensamente no DVD Adúltera, filme de 1947 em cópia restaurada, dirigido por Claude Autant – Lara. O título em português é uma besteira que oculta o original, Le Diable au Corps, o mesmo do romance do qual o filme foi adaptado, escrito por Raymond Radiguet que morreu aos 20 anos, três depois que publicou o livro. É mais uma história de amor contrariado, mas com contornos próprios, especiais e perturbadores. Numa cidade da França, durante a Primeira Guerra, impetuoso adolescente se apaixona por mulher casada com militar ausente, lutando no front. Claro que não vai dar certo, mas quem consegue interromper o fluxo devastador de uma paixão alucinada? Anos depois, Marco Bellocchio tentou uma nova versão destacando as implicações psicanalíticas da história. Não conseguiu superar Claude Autant – Lara que acompanha os amantes com ternura e cuidado, encenando e filmando cenas de amor cuja rara beleza é impossível esquecer. Conheço espectadores que viram o filme há mais de quarenta anos e ainda guardam frescas na memória as imagens do envolvimento de Gérard Philipe e Micheline Presle. Ele, no papel que marcou e impulsionou sua carreira está de fato com o diabo no corpo; ela, atriz extraordinária e belíssima, perfeita no personagem que a fez entrar na eternidade das maravilhas deste mundo.
Para ver e rever, Rosario. Muitas vezes. Um beijo.
P pinheiro

CANTO DOS AMIGOS

The itsy bitsy spider e outras estórias


“The itsy bitsy spider climbed up the water spout
Down, came the rain and washed the spider out
Out came the sun and dried up all the rain
And the itsy bitsy spider climbed up the spout again”

Canção de ninar musicada por Carly Simon

Esta noite sonhei com você.
Sei que não deveria, afinal várias décadas e alguns casamentos depois, cada um seguindo seu rumo, constato que são apenas fragmentos de situações do passado que meus sonhos reproduzem.
Nesta época de Copa do Mundo, quando torcemos juntos e choramos um título que somente alguns anos depois comemoramos, então já apartados, isto se torna mais forte nas lembranças.
Como saber que o sonho era com você se somente vi sua orelha coberta com os cabelos castanhos? Minha certeza é simples, pois naquela época, qual gado marcado, sua imagem ficou impressa, como ferro em brasa, nas minhas melhores e piores memórias.
Lembrei da rima que você cantava e que nós dois, muito jovens, de braços dados, dançávamos numa Avenida Atlântica ao entardecer de uma lua cheia.
Fiquei o dia todo com sua imagem e sua voz e não tive como deixar de te escrever. Talvez você leia, ou não esta estória, mas o meu transbordamento de afeto, com as bitter sweet memories me acalenta.
Quem sabe um dia nos encontramos de novo, assim como a obstinada spider?
Um beijo.

João Siqueira

28 de jun. de 2010

SAPATINHOS VERMELHOS

Demorei muito para aceitar o convite do Zé, feito no Recado do Zé no último dia 17– isso não é convite, é provocação – para escrever sobre os Sapatinhos Vermelhos, morta de medo.
É uma grande responsabilidade e eu não me senti preparada à época. Agora resolvi topar o desafio e vamos nós...
É uma pena não termos espaço aqui para eu contar com detalhes a lenda de Andersen que é belíssima e cheia de simbologia. Mas não dá, não dá. Falaremos então dos mais evidentes, que já coisa à beça.
Eu, danada de folgada, cheguei a escrever um roteiro dos Sapatinhos à brasileira. Mas como tudo no Brasil, a grana não saiu e o projeto não foi pra frente. Guardo-o aqui com o maior carinho.
Estávamos falando da simbologia dos Sapatinhos...
A história dos Sapatinhos, à primeira vista é super simples, isso só são aparências: jovem órfã em andrajos, comia o que colhia pelas florestas, mas nem sapatos possuía. Aos pouquinhos com suas próprias mãos, catando pedaços de pano aqui e ali fez seus próprios sapatinhos e com eles saiu saltitando pela floresta. Detalhe: eles eram vermelhos e ela os adorava. A cor deve ter mais de um significado.
Um dia colhendo seus frutos pela mata foi abordada por uma carruagem com uma velha senhora que penalizada da situação da órfã, recolheu-a levando-a para casa. Reparem: do estado de pobreza total nossa órfã passa a riqueza repentinamente. Muda seu status social.
Em lá chegando, a senhora pega as maltrapilhas roupinhas da nossa heroína e joga-as na lareira, incluindo os tão amados sapatinhos. A menina ficou inconsolável. Ela adorava aqueles sapatinhos feitos com suas próprias mãos. A velha senhora, para compensar esta perda, leva a menina às compras no dia seguinte. Compram roupas e a menina vê no sapateiro reluzentes sapatos vermelhos, que a encantam.
Depois é o que todo mundo sabe: os sapatinhos adquirem vida própria e saem fazendo a menina dançar sem vontade própria. Ela perde o controle que tinha sobre seus próprios pés a ponto de ter que decepá-los por não conseguir tirar os sapatos colados a sua pele. Aqui, como na maioria dos contos de fadas temos um final brutal e moralista.
Estávamos falando da simbologia desse conto. A mais evidente para mim é a da transgressão. A menina é punida por dançar, por dar asas à alegria. Mas temos outras leituras morais.
Podemos pensar que a punição vem porque alguém (s) se entregou sem limites aos seus vícios: sejam esses de qualquer origem – mudança de status de vida repentina; busca desenfreada pelos prazeres mundanos... Enfim, a pessoa será penalizada por não ter conseguido colocar limites pra si própria. Acho essa mensagem a mais profunda deste belo conto.

24 de jun. de 2010

RECADO DO ZÉ


Rosario,

Vamos retornar ao luminoso mundo, às belezas que o céu nos mostra. Rever as estrelas. Depois de Elizabeth Taylor, Anna Magnani. Ela está no DVD O Amor, título que reúne dois filmes de média metragem dirigidos por Roberto Rossellini. No primeiro, A voz humana, Anna, ao telefone, desespera-se na tentativa de impedir que o amante a abandone definitivamente. É uma adaptação para o cinema do famoso monólogo teatral de Jean Cocteau, desafio permanente para as grandes atrizes contemporâneas. La Magnani se apropria do texto e mergulha sem qualquer proteção nesse poço de angústia, expondo-se com a maior naturalidade na expressão e exibição dos sentimentos mais contraditórios. São 36 minutos exemplares de uma época em que os filmes tinham muitas dimensões. Inesquecível. O segundo filme, O Milagre (43 minutos) é uma pequena obra prima, com a beleza e a graça da simplicidade: Anna Magnani é uma camponesa apaixonada por um pilantra que se apresenta como São José, ao engravidar ela acredita que dará à luz ao menino Jesus. No papel do pilantra, em uma rara aparição como ator, um novíssimo (o filme foi realizado em 1947) Federico Fellini, também autor da história. Imperdível, Rosario.

Ciao, P pinheiro

A OUTRA

_ Oi!
_ Ooi!
_ Quanto tempo
_ Séculos... O que você tem feito da vida? Tá ainda casado?
Foi casual de fato, foi. Inesperado aquele encontro.
Fingi normalidade, mas por dentro eu tremia inteira. Estava diante da primeira das minhas grandes paixões adolescente. Nas festinhas que chamávamos “matinês” ele tocava bateria, nunca vou esquecer. Eu ia pro clube só pra vê-lo.
Amor platônico, naquela época. Depois vida que segue. Eu viajei, casei, soube que ele havia feito o mesmo e parecia muito feliz. Eu ouvia falar das inúmeras viagens pelo mundo, onde ele parecia estar em eterna lua-de-mel.
Também, pudera! Ele não se casara com alguém normal. A mulher com quem casou era um ícone de inteligência e beleza. Que por sua vez só havia casado com ricos e poderosos. Ele devia estar no topo.
E eu com o casamento em frangalhos, mas com a vida centrada e concentrada em Miami. Dinheiro? Tive muuuito dinheiro, agora ainda tenho algum, mas perto do que era... sounds ridiculous. Vocês me perdoem, mas às vezes meu português falha.
Depois disso só uma vez,num restaurante da moda, eu estava num grupo grande só de mulher, algumas até amigas da Pilar (que é como se chama a mulher dele). Eles estavam os dois e mais um casal. Me pareceu muito antipática, alheia e nada daquelas belezas tão alardeadas.
Soube, porém, através do meu grupo, que isso era só resultado de um câncer que ela tivera agora. Ah, bom! Ele comigo foi hiper simpático, caloroso até. Estranhei e tive a sensação todo o tempo que havia um pouco de mise en scene para chamar a atenção dela.
Depois disso, anos, muitos anos depois... novo esbarrão, desta vez fatídico. Eu estava num cofee shop, ele também. O homem havia engordado uns 200 quilos. Quem sou eu para falar de gordura?! O meu ponto fraco. Ele me disse que havia acabado de separar, eu já separara há muito. Dinheiro, portanto, para mim, não era nenhum problema... Convidei-o com tudo pago para um cruzeiro pelas Bermudas. Convite feito, convite aceito.
Reparei que ele não me parecia mais tão poderoso ou rico, como eu imaginava. Talvez passando dificuldades, separar é caro. Disse-me ele que ela estava numa clínica do interior de Minas internada para desintoxicação do álcool. Coitada, depois do câncer, isso. Ele estava com ódio, muita raiva dela. Como se ela houvesse decidido se tornar alcoólatra...
Isso ta fazendo três anos. Muita coisa mudou... O nome dele é Felipe, mas a gente o chama Ipi. A honestidade e sinceridade dele são desconcertantes. Ele nunca me escondeu que a mulher da vida dele era Pilar, sempre foi e jamais deixaria de sê-lo. E que casar, depois de 25 anos com Pilar, nunca mais. Nem mesmo com ela.
Era um homem novo, que eu acabava de conhecer e parecia-me muito complicado, nessa relação com ela. De resto, era perfeito, adorável, cavalheiro, carinhoso... Homem como antigamente. E o que me perturbava muito é que volta e meia eu o sentia apaixonado por mim. De pirar! O tempo que passamos no cruzeiro foi uma verdadeira lua-de-mel.
Ninguém poderia dizer que não era paixão o que estávamos vivendo. À exceção de umas duas ou três noites que ele bebeu, tomou um porre, como dizem por aí e chorou, chorou muito de saudades dela. Eu não disse que ele era sincero? Translúcido na verdade.
De lá pra cá Pilar vem se insinuando e ganhando terreno. Do ódio inicial sentido por ele, passou a um amor sempre presente e uma preocupação eterna com ela. Preocupação essa que beirava a doença. Ele sentia, sentia não. Sente uma culpa doentia pelo estado em que ela se encontra.
E qual estado em que ela se encontra? Normal, nada lhe falta (ele não deixaria) e parece também que ela não é de gastos excessivos e leva uma vida quase monástica. Não podendo beber ou fumar poucas chances de divertimento sobram. Ela escreve (e parece que bem) e tem um blog. É esse o universo em que ela transita. E vive doente.
A princípio achei que fosse tudo encenação para preocupá-lo. Mas não. Vi depois que eram seqüelas da doença. E agora? Agora eu entendo tão bem quando o amor rima com dor.
Agora eles estão imersos em dívidas. Pilar e ele, como já disse antes, ele culpado com a situação toda. E meu Deus! Quem diria?! Sobrou para mim. Volta e meia ele vem e eu empresto (quer dizer, dou. Porque jamais verei de novo essa quantia. Mesmo sabendo que o que estou dando beneficiará a ela). Que me importa?
Se me perguntarem se ainda o amo, vou responder: sempre. A nossa transação sexual, a nossa trepada é dos deuses...
Agora estamos vivendo a três. Não, não é verdade. Eles estão juntos mais que nós. Às vezes passamos meses sem nos ver. Mas de qualquer forma ele é um grande amigo no qual confio muito. Mas sou franca e sei perder. Eles estão talvez mais juntos do que nunca.
Sem preconceitos, agora: ele se transformou em meu puto de luxo. Como vai terminar essa história? Não tenho a mínima idéia e, por favor, quem souber me avise. Porque muito me interessa.

21 de jun. de 2010

ORFANDADE

Prostitutas, cafetões, viciados, alcoólatras, marginais de toda a espécie são os meus companheiros da noite. Quando eu saio à caça é o horário preferido deles. Nos conhecemos em todo o esbarrão nos becos. Não somos muitos, por isso eu sei.
Para chegar ao meu objetivo, transformo-me numa linda e jovem socialite e procuro lugares caros freqüentados por pessoas requintadas. Ali, eu brilho. Não estou à venda, porém quando o cara é muito, muito rico eu estudo as possibilidades...
É impressionante como tem babaca nesses lugares “ditos” chiques. Um em especial, “parou” na minha e parece me seguir. Eu entro num lugar, cinco minutos depois, ele chega. E não pára de me olhar, esteja eu acompanhada ou não, ele não desgruda. Já pensei em dar um “chega pra lá” nele, mas depois acho que acaba sendo pior. Homens gostam de sofrer...
Um dia ele se animou e vem sentar do meu lado:
_ O que posso te oferecer para beber? – ele era o cara mais almofadinha e via-se logo, filho de família rica que não faz porra nenhuma. Achei pela primeira vez que eu podia fazer isso render com juros e correção monetária a meu favor.
Quem sabe eu não havia descoberto a chance do cofre?!
Languidamente respondi:
_ Um Dry Martini. – Eu estava por dentro que o Dry Martini era a bebida dos chiques e poderosos. Deus não me deu dinheiro, mas me fez “safa” e inteligente além de bonita pra ninguém botar defeito. Preciso criar um nome e sobrenome de família “quatrocentona” pra mim.
_ Como você se chama?
Rapidamente, respondi:
_ Letícia Soares Ribeiro. Para os íntimos, Leti. Mas você não é meu íntimo. Pelo menos por enquanto...
Eu estava adorando aquele jogo de “bate e assopra”, pois sou boa em fazer isso com os homens: dou e tiro. Homem adora ser sacaneado, pelo menos os que eu conheci. Outra coisa urgente para mim era arrumar um endereço chique para empurrar goela abaixo do “mauricinho”. Porque a essa altura eu já havia me decidido em conquistá-lo convencida que estava que faria fortuna.
Lembrei de uma bicha amiga que era “podre” de rica e morava na Av. Atlântica. “Ela”me adorava, eu volta e meia ia lá levar uns “papéis” para ela, “fissuradona” em cocaína. A bicha não dormia sempre “ligadona”. Ela iria adorar que eu passasse uma época com ela, já havia me convidado milhões de vezes.
Pegando meu celular último tipo, “a gente pode não ter nada, mas o pouco que se tem, tem que ser melhor”, levantei-me da nossa mesa e andei em direção ao banheiro, sem nem ao menos me dirigir ao meu recente fã. Eu precisava me assegurar com a “traveca”de poder ir dormir lá essa noite e quanto mais precisasse.
Havia deixado minha bolsa na mesa, o que asseguraria a minha volta. A “traveca”, Lola, foi só amor. A casa, portanto era minha. Eu tinha uns “papelotes” para dar a ela, aproveitei, cheirei um, me certificando que não estava dando bandeira com o nariz e lânguida ainda, voltei à mesa.
_ E o seu?
_ O meu, o que?
_ Nome. Você perguntou pelo meu... Como é que você se chama?
_ Rodolfo. Rodolfo Duque Estrada.
_ Nome de rua, é? Eu sei. É perto da PUC. Estudei lá. – Eu adorava mentir. Era meu esporte favorito.A noite transcorreu divinamente bem...
Em menos de um mês, estávamos casados, morando numa mansão da Gávea. Todo e qualquer desejo meu, Rodolfo corria para atender. Ah! Casei de véu e grinalda, disse que minha família não podia vir, pois estava num cruzeiro pelas Ilhas Gregas... Ha, ha, há...
Mas Rodolfo com seu jeitinho manso e doce foi me conquistando pouco a pouco. Os meus amigos “barra pesada” foram ficando pra trás, assim como dei adeus aos becos e vielas. A impressão que eu tinha era que aquela vida não me pertencia.
Eu me sentia tendo nascido quando casei com Rodolfo. Minha família em Goiás nunca havia se metido. Rodolfo tinha perdido os pais num acidente de avião quando ele ainda era bem pequeno. Fora educado por uma tia pela qual não tinha o menos apreço. Pouco a pouco fui falando toda a verdade sobre mim. Rodolfo não deu a mínima, pareceu realmente não se importar.
Eu, que a vida me fez cínica, conhecia pela primeira vez amor, aceitação e respeito. Nunca imaginei ser amada assim: acima do bem e do mal. Tudo isso me adocicou também. Eu perdia minhas defesas. Nunca imaginei ser possível amar e ser amada. Foi nesse clima de grande comunhão que engravidei. A criança viria coroar toda a nossa felicidade.
Mas não comigo. A vida nunca me viu com bons olhos e sempre me maltratou. Perdi a criança aos 5 meses e “pirei legal”. Fugi de casa e do Rodolfo. Parecia-me que eu não havia nascido para ser feliz. Não eu.
Voltei aos becos e as velhas companhias. Rodolfo não conhecia essa vida, não seria fácil para ele me encontrar. Comecei a cheirar como doida e a “biritar” também. Dormia ao relento sem eira nem beira. Eu havia ligado o “foda-se” e queria que o mundo explodisse. Engraçado, em menos de um ano passei por mundos tão extremos... só podia acontecer comigo!
Estava que era pele e osso. Mendigava, mas era pra comprar pó. Me prostituía também pela mesma razão. Uma noite sem que eu me apercebesse um carro se aproximou do lugar que eu fazia ponto e veio me abordar. Pensei que era alguém querendo comprar pó ou afim de uma transa. Sem que eu pudesse respirar, dói “armários” me pegaram por trás e me jogaram dentro do carro. Achei a princípio que fossem dois “canas”. Quando entrei no carro é que percebi a história toda: lá dentro Rodolfo me esperava cobrindo-me de beijos. Eu, cheirada e maltrapilha, não consegui esboçar reação...
E sem que eu desse pela coisa, fui internada, aqui no interior de Minas para desintoxicação. “Detoxi” como eles dizem. É daqui que escrevo esse relato, sem saber bem o que vai acontecer comigo. Estou escrevendo rápido que é pra dar a uma amiga jornalista que jurou publicar e já está indo embora. Não sei o que vai ser de mim, sinto muitas saudades do Rodolfo, mas não tenho idéia se ele vai me querer de volta, uma vez que eu esteja “limpa” como dizem aqui. Torçam por mim, por favor, gente. Torçam que quem sabe Deus ainda me dê uma chance.

19 de jun. de 2010

BLACK IS BEAUTIFUL

Estou me reconstruindo em novas bases. Não vai ser fácil, mas vou conseguir. Quando me deixou pra ir viver com uma menina da idade de sua filha, não me perguntou se eu ficaria bem, ou não. Agora fala em voltar?! Acho que já chorei tudo que havia para ser chorado...
Ainda te amo muito e você sabe disso. Mas agora que eu comecei a andar com meus próprios pés, essa sua conversa vem me desestabilizar. Me pegou desprevenida, você sabe.
Você foi o único homem de toda a minha vida e você também sabe disso. Mas começava a saborear um gostinho de liberdade pela primeira vez na vida. Sei lá... Será que não poderíamos ficar assim?!
Eu me dediquei tanto a você e às crianças. Fora a escola. É claro que esqueci de viver. Não é por sermos negros que devemos nos deixar ficar à margem. Ao contrário, eu tenho me envolvido em todos os movimentos pra que sou chamada a defender nossas causas. É pouquinho, mas já é um começo. Estou super animada a cada luta que me engajo, me sinto mais e mais atuante mesmo, participativa é a palavra que define minha posição.
Você devia seguir o meu exemplo e vir para a luta também. Uma das coisas que me irrita a seu respeito é essa sua submissão, essa obediência cega ao sistema. Sei lá, você pra mim é um “negro” com alma “branca”.
Quanto mais penso mais me dou conta de nossas diferenças. Até a garota que você namorou é loira. Tudo isso nos afasta e penso que pra sempre. O que? Você não aceita isso?! Mas não é questão de aceitar, me amor... Para fazer um casal, precisa os dois quererem. E de mais a mais, ainda não havia te dito, mas agora sou eu quem está envolvida com uma pessoa, lá da “luta”.
O que você está fazendo com essa arma? Ai, ai! Não. Por favor... Não!Não!

17 de jun. de 2010

RECADO DO ZÉ

Rosario,
Gostaria que você falasse de Os Sapatinhos Vermelhos, a história de Hans Christian Andersen, que eu sei que é uma de suas paixões e para a qual você começou a desenvolver uma adaptação em argumento que se transformaria em roteiro para cinema ou peça de teatro. Me bateu a curiosidade sobre até onde você chegou na sua versão depois que acabei de assistir aos Sapatinhos Vermelhos filmado na Inglaterra em 1948 por Michael Powell e Emeric Pressburger que saiu em DVD em cópia restaurada por Martin Scorsese, um fanático do filme. Você tem que ver – ou rever. A versão de Powell e Pressburger gira em torno de personagens = uma jovem bailarina talentosa, um músico de gênio, um empresário diabólico, coreógrafos e cenógrafos – envolvidos na produção de um ballet cujo enredo reproduz o conto de Andersen: sapateiro vende sapatinhos encantados a uma garota que, ao calçá-los, não consegue mais parar de dançar e morre de cansaço. A história dos bastidores, como em um espelho, reflete-se na história do ballet e termina, também, tragicamente. É de chorar e, ao mesmo tempo, é belíssimo. Você vai se deslumbrar com os atores Moira Shearer, Anton Walbrook e Marius Goring, com a fotografia de Jack Cardiff e com trechos do Lago dos Cisnes e Giselle que preparam o espectador para o ballet dos sapatinhos, aproximadamente quinze minutos de pura beleza.
Agora conta, e os seus?
Tchau, P pinheiro

CANTO DOS AMIGOS

MUITOS ANOS DE VIDA!

AS ESTRELAS NÃO SÃO COMO ANTES
ELAS NÃO ME ACOMPANHAM MAIS NA SOLIDÃO DA NOITE
A NOITE POR SUA VEZ ANDA A CADA DIA MAIS CLARA
EXPONDO SEUS MISTÉRIOS COMO UMA PROSTITUTA DE VITRINE

PERDI A DELICIOSA SENSAÇÃO DE ME SENTIR SEGUIDA
OH, DEUS, HÁ QUANTO TEMPO NÃO CORRO
NÃO PEÇO SOCORRO
NÃO FAÇO PROMESSAS
ARRANCARAM DE MIM O BENEFÍCIO DA PRESSA
EU TINHA APEGO AOS MEUS DELÍRIOS
AOS MEUS PESADELOS CRUEIS
A SENSAÇÃO DO DESVIO
O ABISMO SOB OS PÉS

NÃO FAREJO MAIS NA ESCURIDÃO DA NOITE
OS PERIGOS QUE ME EXCITAVAM TANTO?
CAÇOO E ATÉ CANTO.

LAMENTO ME INFORMAR:
ENVELHECI!
Maria Carmem Barbosa

14 de jun. de 2010

CARTA DE ALFORRIA

Nunca tive pai ou mãe, o que talvez explique tanta carência.
Quando me entrego a você sou toda tua, só tua
Entrego não só meu sexo, mas tudo. Sou tua inteira
Você me conhece palmo a palmo
Aproveita e espezinha...
Nasci com você, essa é a grande verdade
Antes era um vegetal, de nada sabia
Você deu-me norte
Comecei a entender o que antes intuía

Além de me iniciar nos mistérios do sexo
Mestre, professor que é
Treina bem comigo pra depois ir brilhar com as outras, todas putinhas
De uma coisa você não sabe: sou boa aluna
Estou aprendendo bem depressa.
Dia chegará que darei meu grito de independência
Sairei em busca de liberdade
Com tudo que aprendi, de aluna passarei a professora
Treinando com todos, um a um, iniciá-los-ei
Depois não me venha reclamar...
Foi você quem quis assim

Sou curiosa...
Como você se sentirá quando esse dia chegar?
Porque não direi nada...
Serei eu a te tripudiar
Ganharei a rua e minha liberdade e não direi palavra
Quem sabe? Livre de você pra sempre!
É incrível, sinto alívio
Talvez bata saudade. Mas saudade dá e passa.
Principalmente porque terei alguém que me ame

Eu te amei desesperadamente
E você me usou e jogou fora
Sem perdão, isso não irei esquecer nunca
Quando esse dia chegar
Descontarei todas as humilhações pelas quais passei
Tem nada não, amor
Sou esperta, estou já escrevendo minha carta de alforria.
Mil estradas trilharei sem você.
O mundo agora só a mim pertence.
Quero ver o que me espera...
Chora não, você logo vai se acostumar...
Ou vai ter que vir comer meus restos, minhas sobras
Como eu fiz um dia.

Com carinho, à amiga Ana Laura

10 de jun. de 2010

CANTO DOS AMIGOS - ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS

As namoradas
Deixei um pouco de lado minhas ironias sobre a política nacional, pois sábado próximo comemora-se o dia dos namorados, e, nesta época, sempre me lembro das minhas primeiras paixões.
Paixão do latim, patior, que significa sofrer, é uma emoção patológica.
O infeliz (!) do apaixonado perde sua individualidade e o poder de raciocínio em função do fascínio que o outro exerce sobre ele.
Ao tempo que prosperaram, todas as paixões foram assim, me fazendo sofrer intensamente e, como costuma ser, depois me recuperando.
Já falei sobre a primeira, que não acreditava serem possíveis números relativos, e que servi de “explicador” de álgebra, até acabar a paixão. Outra, inesquecível, que ao receber rosas pela primeira vez, pela emoção inusitada, fez deste fato paradigma para todas as flores que enviei na vida.
Uma destrambelhada que colecionava copos descartáveis quando jovem e posteriormente maridos, o que é a mesma coisa.
Uma que roubava girassóis nos jardins da PUC, evoluindo para bromélias na estrada para Petrópolis, sem nunca perder a poesia.
Uma artista dos pincéis e das escritas, buscando a música na alma dos viventes, se doando a cada minuto com seu trabalho.
Uma linda e sonhadora, que sempre foi uma desgraça na cozinha, despertando o meu lado “chef” para sobreviver à gororoba.
Uma que foi comigo ao Nordeste, numa copa do mundo do passado, que me fez esquecer os gols e as desilusões.
Uma didata, que corrigia minhas vírgulas e concordâncias, mas nunca deixou de me dar carinho e incentivar minha escrita mambembe.
No meu imaginário neste 12 de junho, encontro todas elas, lado a lado, atemporais, felizes, caminhando por um Rio de Janeiro mágico, que só existe na minha memória, e digo a cada uma, como foram e continuam importantes para mim e que sinto muitas saudades.
É bom e prazeroso este resgate, e, quem sabe, alguma até leia o que agora escrevo.
Vejo o sábado chegar, e desejo a todos um Feliz Dia de Lembrar as Primeiras Paixões e Namoradas, onde quer que elas estejam.
E sinto que não há sofrimento nesta paixão, somente alegria.

João Siqueira

LEITURA DA PEÇA "SEM MAQUIAGEM"

A PEÇA SEM MAQUIAGEM, DE AUTORIA MINHA JUNTAMENTE COM A TESSY CALLADO SERÁ LIDA NO FESTIVAL DE INVERNO DO SESC 2010.
NUMA PARCERIA COM A CASA DA GÁVEA, A PEÇA FARÁ TODO CIRCUITO OFF RIO.
AS LEITURAS SERÃO FEITAS PELAS ATRIZES TESSY CALLADO E DORA PELLEGRINO EM TRÊS LOCAIS E MOMENTOS DIFERENTES:

- 14/07 em Petrópolis às 18hs;
- 21/07 em Nova Friburgo às 18hs;
- 25/07 em Teresópolis às 18hs.
 
VENHAM NOS PRESTIGIAR E SE EMOCIONAR BASTANTE... 
PARTICIPEM TAMBÉM DO DEBATE QUE SERÁ RIQUÍSSIMO

8 de jun. de 2010

RECADO DO ZÉ

Rosario,

Aí em cima o bailarino Kazuo Ohno que morreu dia 1º, aos 103 anos. Tudo sobre ele está nos sites Kazuo Ohno Dance Studio (http://www.kazuoohnodancestudio.com/english/) e Kazuo Ohno Archives (www.muspe.unibo.it/biblio/ohno/archives.htm) e no livro Kazuo Ohno, de Emídio Luisi (fotos) e Inês Bogéa, publicado no Brasil pela Cosac&Naif.
O beijo mais gostoso já registrado na história, o beijo mais apaixonado, o beijo mais incendiário, o beijo mais abissal, o mais úmido, o mais lascivo e libidinoso já pode ser visto novamente, no instante mesmo em que se realiza. Está em Um lugar ao sol (A place in the Sun), o clássico americano de 1951, preto e branco, que volta em DVD para vendas e nas locadoras. Seus autores, Elizabeth Taylor e Montgomery Clift, dois animais na plenitude de seus poderes físicos e mentais, e Georde Stevens, o diretor do filme. Em sua 1ª personagem adulta no cinema, Elizabeth começa a sua carreira de atriz mais bacana do século.

Beijos,
P pinheiro

FÁBULA MODERNA

Eu nasci num tempo muito, muito remoto. Uma terra de sonhos e fantasia, entre fadas e princesas. Meu pai, o rei, que tanto havia me esperado, chamou para perto de meu berço todas as fadas de seu reino, para me abençoarem e desejar boa sorte.
Eram 5 fadas e vieram para me desejar que eu crescesse com todos os predicados e pudesse ter o que havia de melhor no reino. As 5 se dividiram e vieram uma a uma perto de meu berço com uma varinha mágica.
A 5ª desejou que eu viesse a ter uma beleza incomum. Foi o que veio a acontecer. Assim sucessivamente: inteligência, talento, riqueza eterna e que viesse a ser muito amada por todos. Ninguém contava porém que a última das fadas, invejosa e cruel e que por isso não havia sido convidada, fosse aparecer para usar de seus poderes também.
_ Sim, disse ela, ela terá todas essas qualidades, sim. Mas de nada adiantará, pois de tudo isso ela jamais terá consciência.
Essa lenda mítica retrata de forma fantasticamente simbólica, o que veio a acontecer comigo. Encaixo-me de forma total nessa história, não tivesse sido ela contada por minha analista.
Eu cresci feito princesinha, pelo menos papai me amava e supria minhas carências como tal. Minha mãe, a bruxa má, invejosa de tanto amor e de meu enorme sucesso, conseguiu durante um longo tempo, tal qual a princesinha, que eu não tivesse consciência do meu potencial.
Sofri com tudo isso anos a fio, ciclotímica com meus altos e baixos. Até que uma noite tive um sonho, tal qual a lenda, envolto em brumas. Na verdade fora, vários sonhos entrecortados, mas que no fundo se completavam.
Neles eu me via, nas situações mais inusitadas. Sonhos são altamente reveladores do nosso inconsciente como todo mundo sabe. No primeiro a moça da soleira da porta me sorri. Retribuo ao sorriso. Parece-me vagamente familiar. Vejo-me nela quarenta anos atrás. Que pensará do que fiz dela todos esses anos? Seu olhar é compassivo. Poderá ela compreender realmente os caminhos tortuosos que fui obrigada a trilhar?
Essa minha solidão desesperada? Minha vida começa a passar em slow motion. No outro sou passarinho que não se deixa capturar. Quando pensavam ter-me as duas mãos em concha, eu fazia um movimento qualquer e conseguia me esquivar e voar para bem longe. No último, mais uma vez me vi, foi de relance, mas parecia-me olhar num espelho. Nesse sonho eu via uma mulher que se parecia comigo, mas não era eu. Como se tivesse um duplo meu. Eu queria tocá-la mas ela tal qual o passarinho se esquivava e desaparecia em meio às brumas presente em todos os sonhos.
Voltando a mim agora: desci baixo muito baixo, desci aos quintos dos infernos por isso posso escrever sobre isso. Foi uma época “brabeira”, mas essa grande escola que é a vida foi definitiva e trouxe-me de volta a uma pseudo normalidade. Normal eu não serei jamais. E apesar de tudo eu tenho estrela, as fadas boas me salvaram e posso ter uma certa serenidade para escrever tudo que passei.
A solidão das seis da tarde ainda me dói e as marcas do tempo no meu rosto impressas estão. Mas conquistei isso e agora sou estrela do meu filme, basta de viver a vida dos outros.
Acho que meu pai, o rei, estaria orgulhoso do que conquistei agora. Que bom! Consegui chegar a essa constatação simplista e simplória: eu gosto de mim agora.

1 de jun. de 2010

FERVO A ZERO GRAU

Eu vivo tropeçando em mim mesmo. Pretendo saber tudo e nada sei.
Nos becos em que me escondo
A barra é tão pesada
Que a polícia ali não entra.
Não foi sempre assim, não fui sempre assim
Só e marginal
Nasci em berço de ouro
Tive família com sobrenome famoso
E coisa e tal
Começou pouco a pouco, pouco a pouco
Eu me vendi: uma fileira aqui,
Primeiro a cocaína
A hero veio a reboque
E agora eis-me aqui
Vendendo pra comprar
Até quando, senhor, até quando?

Deus, quanto queria um amor
Mas quem vai me querer
Vivendo de buraco em buraco
De barraco em barraco?
Quem?
É estranho, mas sou muito religioso
Acredito em milagres
Por que não poderia acontecer comigo?
Preciso tanto me salvar...

Espera aí,
Ouço um som e uma luz
Vem me cegar
Não disse? Milagres ocorrem
Por que não comigo?
Tá acontecendo: sinto o coração apaziguado
E a luz que me cegava veio junto com a Virgem
E vão me levar para lugar sagrado
Onde terei paz e sentirei amor
Pronto! Acionei o gatilho.
Acabou.

CANTO DOS AMIGOS

Cena de um dia de outono

Heal The World , Make It A Better Place ,For You And For Me And The Entire Human Race ,There Are People Dying ,If You Care Enough ,For The Living ,Make A Better Place For You And For Me
(Michael Jackson)

Hoje pela manhã lá pelas 8h, indo para o trabalho, ouvia a rádio JB que tocava “Heal the World”. No caminho para a Barra assisti uma cena que preferia não ter visto, pois nossa ancestral culpa cristã ocidental se agitou. Uma família, mãe, pai e um menino de uns 6 anos, revolviam alegremente todos os containers laranja de lixo deixados na calçada.
Sim, faziam isto com alegria, separando algumas latas, vidros, papelão, e quem sabe algo que talvez ainda desse para consumir. Lembrei-me de um curta antigo “Rio das Flores” que traçava a trajetória de um tomate da sua colheita até o seu consumo ou uso final.
Fiquei com vergonha de ter olhado esta cena, invadindo a intimidade desta família, ouvindo a música como contraponto absurdo sob um sol ainda tímido deste outono.
O menino realmente se divertia, ajudando aos pais a colocar num grande saco preto os objetos que iriam para algum sucateiro da região.
Perto dali 2 porcos (eu juro) competiam com os ditos humanos, também resgatando alguma coisa aproveitável no lixo espalhado. Lembrei de cenas da Idade Média numa Europa cercada de sujeira, mas retornei ao real e vi que estava na Barra da Tijuca em 2010.
Ao redor do lixo, voavam moscas, certamente alguns mosquitos da dengue, e principalmente minha tristeza e decepção com tudo.
O trânsito voltou a fluir e esta cena ficou apenas no retrovisor do carro e na alma.

João Siqueira