29 de set. de 2010

VEM MAIS NOVIDADE POR AÍ: CANTINHO DOS LIVROS

A agente literária Vanessa Balula inaugurará aqui no blog, em breve, o nosso CANTINHO DOS LIVROS. Contando lá do Sul, onde ela é uma das donas da Agência da Palavra, sua experiência com livros que leu, que está lendo e que virá a lançar. Estamos abrindo as portas para uma super profissional em literatura.  Para saber um pouco mais sobre seu trabalho é só acessar também o blog da Agência www.agenciadapalavra.blogspot.com.

CANTO DOS AMIGOS

VERDADE

Anna Maria Ribeiro

Aqueles que viveram os anos de chumbo certamente se lembrarão do filósofo e jornalista André Gorz. Seus livros eram proibidos por aqui e tê-los em casa constituía um grave delito, passível de prisão. Naquela época, este teórico da Revolução ainda não havia se voltado para ecologia, como fez anos mais tarde. Apenas dois livros haviam sido lançados em português antes do fatídico ano de 1969: “Estratégia operária e neocapitalismo” e “O socialismo difícil”. A partir daí pararam as edições, voltando a ser traduzido e publicado no Brasil somente em 1982. Sempre imagino quem seja o autor quando leio um livro. Não o aspecto físico dele. Mas ele mesmo, lá por dentro. André Gorz se revelara para mim enfarruscado e seco. Qual minha surpresa quando pelas mãos de minha filha, me chega um pequeno livro, o último que escreveu, intitulado “Carta a D.- História de um amor” . Não deve ser o mesmo Gorz, pensei. Um romance! Ele?! Minha filha esclarece: é ele mesmo, numa carta dirigida a sua mulher Dorine, em 2006, já bem velho. E me alerta: dá uma lida no primeiro parágrafo! E foi aí que me vi às voltas com um redemoinho de sensações entre as quais, vergonhosamente, percebi em mim a inveja! Muita inveja. Não resisto à tentação de provocá-la também nos homens e mulheres que me lêem e vou transcrevê-lo:
Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.
Devorei o livro em pouco mais de duas horas e ele perdura há dias dentro de mim provocando sensações por vezes dolorosas. Gorz levou cinqüenta e oito anos para dizer a Dorine a mais importante das verdades: o que ela significou em sua vida. E não foi do significar sentimento que ele falou. Foi do significar da pessoa dela em tudo que fez, em tudo que se tornou, em tudo que viveu. Em cada momento importante e em outros sem qualquer importância ela tornou sua vida plena, apenas sendo. Presença constante, calor de corpo, silêncio risonho, aceitação e até discordância. Ele não teria sido ele sem ela. Que bom que ele pôde dizer, que bom que ela pôde ouvir. Mas raramente é assim. Falamos a verdade mas não A VERDADE. Não percebemos que é preciso falar, falar e falar exaustivamente do que realmente existe entre dois próximos para que se possa entender o seu significado. Não é o “discutir a relação”, imagina! Longe disto. É tão maior: é o ser de cada um para o outro, tornando-se si mesmo só porque existe o outro. Confusa a frase; tão simples e claro seu significado. Perdi meu pai e meu filho no espaço de um ano. Convívio de quarenta e quatro anos com o pai e de vinte e um anos com o filho. E nunca disse a eles o quanto sou e quem sou por causa deles. Por todos os momentos em que existentes me fizeram ser. Falei, sim, e muito, a mim mesma, mas eles já haviam partido. Não disse a eles. Quando Rogério se foi fiquei com seus livros. Ele lia muito e tinha o hábito de marcar com um lápis passagens que chamavam sua atenção, fazendo pequenos comentários. Devorei estas marcas. Era ele me falando, se mostrando. Algumas me surpreenderam. Não devia, não é? Afinal era meu filho e eu o conhecia. Será? Não sei. Conversávamos muito sobre tudo, menos sobre nós. Por que não nos dissemos esta verdade? Privilegiados Gorz e Dorine. Daí a inveja do que não fiz e não poderei mais fazer. Nenhum dos outros livros de Gorz, tão completos, tão esclarecedores, ao contrário do que eu pensava, conseguiu me mostrar o que neste mundo mais se carece. Este tão pequeno, tão singelo, me mostrou: a paz serena e interna pela verdade do que somos pelos outros que fazem a diferença. Se todos a tivessem dentro de si, transbordaria, não é? Como transbordou para Gorz. E que extraordinário efeito este transbordar poderia causar neste mundo tão maluco e violento! O subtítulo “uma história de amor” quem sabe assusta pelo que pode conter de piegas e “dejá vu”. No entanto a verdade de Gorz é inédita. Não há frase, palavra ou significado que não transpire esta verdade de que estou falando e que para mim é nova e revela um caminho que nunca trilhei. Caminho que espero conhecer daqui por diante na companhia de meus filhos e de meus amigos. Vão eles, creio, se surpreender, no início desta caminhada, mas quem sabe, com o tempo, percebam que a paisagem vale a pena. E então, quem sabe, a gente vai ser capaz de se dizer o que importa, antes que este Deus esquisito e misterioso que é o Tempo, nos impeça.
Se esta crônica tiver o poder de fazê-los ler o livro não leiam o posfácio antes de terminar a leitura. Nele se desvenda o final desta história de grande e especial amor. Final que me traz a sensação de estar faltando uma bem aventurança entre as conhecidas: Bem aventurados os que juntos falam da verdade um ao outro porque eles serão especiais aos olhos dos homens.

28 de set. de 2010

ZEZÉ MOTTA VEM AÍ!!!

A atriz e cantora Zézé Motta é antes de tudo Maria José Motta de Oliveira, a militante negra, uma das fundadoras e presidente de honra do CIDAN - Centro Brasileiro de Informações e Documentação do Artista Negro, diretora social da SOCINPRO - Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos Intelectuais e, Superintendente da Secretaria Estadual de Igualdade Racial do Estado do Rio de Janeiro - órgão ligado a Secretaria de Direitos Humanos da SEPPIR, vinculado à Presidência da República. Com isso luta, entre outras coisas, pela igualdade racial e ampliação do espaço dos negros no Brasil.

E é exatamente sobre isso que Zézé Motta vem escrever aqui: suas múltiplas experiências como militante e se sobrar algum tempinho ainda nos contar um pouco da artista e da mulher.

27 de set. de 2010

RECADO DO ZÉ

Vaghe stelle dell’Orsa, io non credea                                         
tornare ancor per uso a contemplarvi
sul paterno giardino scintillanti, nidade e revê-lo
e ragionar con voi dalle finestre
di questo albergo ove abitai fanciullo,
e delle gioie mie vidi la fine.(...)
                                            Leopardi, Canti

Rosario,
neste momento em que você se arrisca num projeto literário difícil e perigoso partindo em busca das pessoas, dos cenários e dos acontecimentos que fazem parte de suas lembranças, numa coincidência feliz, está sendo lançado o DVD Vagas Estrelas da Ursa de Luchino Visconti, a menos citada entre as obras-primas do diretor. O tema geral do filme – o tempo e as transformações e mudanças que ele impõe – ecoa também nos textos que você está escrevendo e vale aproveitar esta oportunidade e revê-lo. Visconti atualiza a tragédia Electra de Sófocles em torno de um personagem idealizado para Cláudia Cardinale, Sandra, que, recém casada e acompanhada do marido, retorna à cidade onde nasceu e passou a infância para uma homenagem ao pai, um judeu assassinado num campo de concentração. A cidade é a pequena Volterra, milenar e corroída pelo vento, parada no tempo, mas onde ainda permanecem escombros de construções etruscas, pré-Império Romano. Em casa, o inesperado reencontro com o irmão há muito desaparecido, o irmão com quem compartilhava, secretamente, a intenção de vingar a morte do pai que a mãe de ambos, com a cumplicidade do amante, denunciou aos nazistas. Visconti acompanha com ternura a paixão amorosa que vai se revelando entre os irmãos, deixando o filme fluir com os prelúdios de César FRANCK e citações do poema Le Ricordange dos Cantos de Giacomo Leopardi (1798/1837), cujo primeiro verso dá título ao filme e ao livro de memórias que o personagem Gianni (Jean Sorel), o irmão, escreveu sobre a infância na casa paterna. Não deixe de ver.
P pinheiro

CANTO DOS AMIGOS

MÃOS DADAS


Outro dia, caminhando no Parque da Cidade, vi um casal de idosos, lado a lado, lendo livros, totalmente absortos e, de certa forma, intui que afetivamente estavam de mãos dadas. Um amparava ao outro em todos os sentidos possíveis, compartilhando emoções, estórias e vivências. Persegui com o olhar até que, cortando a cena, vi uma jovem mãe, com seu filho, de calção azul, pedalando uma bicicleta vermelha, começando a aprender a seguir sozinho mas ainda de mãos dadas. Parei e comecei a tentar descobrir, ansioso, também um outro casal de mãos dadas, o que confesso foi demorado. Eram muito jovens deveriam ter lá os seus 21 anos e a mulher estava grávida. Será este o destino das mãos dadas? Quando somos pequenos (princípio), no ápice do amor (meio), e no entardecer do carinho (fim)? Então também as mãos dadas têm o seu ciclo vital, como qualquer outra ser vivente? Que pena, romanticamente eu pensava que talvez as mãos dadas escapassem desta cruel sina da realidade. Mas, para minha paz, encontrei no Drummond a resposta e até imaginei que os idosos estivessem lendo este poema:

Mãos Dadas - Drummond
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
João Siqueira

22 de set. de 2010

AQUI SE COME BEM

BACALHAU DE MANAUS

Acabo de chegar de Manaus, terra boa, sem dúvida, onde porém, não apenas os turistas, mas os próprios manauenses usam guarda-sóis. O calor é (literalmente) tropical. Mesmo. Um sol inclemente, o ar sufocante. Para quem gosta de um friozinho como eu, uma tortura medieval.
Mas estou aqui para falar de comida e não de sofrimentos.
A regionalidade se faz tão presente que só encontra paralelo aqui no Brasil com as coisas da nossa Bahia. A culinária é o maior exemplo disso. Nomes exóticos como buriti, camu-camu, jambu, tucumã, farinha de uarini e pimenta de murupi convivem em harmonia com expressões já tradicionais, embora não menos estranhas, como açaí, cupuaçu, tucupi, tacacá e que tais. Curiosamente, outra semelhança com a velha Bahia se repara no atendimento: a presteza do serviço também se assemelha com algo assim: “estreeeessssa naum, meu reeeei, já ta saiiiindu”.
Aprovei sem grandes louvores o pirarucu, o bacalhau de lá e mais enfaticamente o tambaqui, em especial sua costela. O bicho, embora de rio, tem um sabor que lembra o da carne de porco, com mais suavidade. Sua carne é tão agradavelmente gordurosa que daria para pururucá-la com facilidade.
Como estas coisas são difíceis de achar por aqui, estou sugerindo então um “pirarucu” de bacalhau, no forno, com purê de mandioquinha (que me agrada mais que o tucupi) e coalho.
Vamos à receita então:
Descasque um quilo de mandioquinhas e as cozinhe juntamente com outro tanto de bacalhau em água temperada com sal. Depois de tudo cozido, escorra. Reduza imediatamente as mandioquinhas a purê e conserve quente. Enxugue as postas de bacalhau, limpe-as de peles e espinhas e ponha-as dentro de um pano grosso. Esfregue em cima de uma mesa até o bacalhau ficar bem desfiado. Descasque e pique finamente dois dentes de alho e misture-os no purê, acrescido das lasquinhas de bacalhau. Junte um pouquinho de azeite aquecido, aos poucos, mexendo continuamente com uma colher de pau. Junte um copo de leite bem quente, também aos poucos sem parar de mexer para ficar um purê seguro e fofo. Tempere de sal e pimenta. Coloque tudo num pirex untado com manteiga e cubra com lascas de queijo coalho. Leve ao forno aquecido a 190º até alourar. Enfeite com azeitonas verdes sem caroço e sirva quente com uma salada verde. Para ficar com a cara de Manaus, sirva ao lado algumas rodelas de banana frita.
Deve dar para quatro gulosos.

Victor Rodrigues

21 de set. de 2010

SONHOS ROUBADOS

Cheguei de Goiás cedinho sem saber direito o que fazer. Uma coisa era certa, havia realizado o que me propusera: vir conhecer o Rio, que só vira por fotos e filmes. Me chamo Andrea e trabalhei toda a minha vida numa fábrica de botões. Ninguém pode imaginar como isso pode ser monótono e mecânico.
Sou uma pessoa sem história. É isso mesmo, não tenho nada de especial para contar, a não ser essa minha paixão enlouquecida pela cidade.
Assim que recebi minha aposentadoria e os outros benefícios, pensei: pronto! Agora vai se tornar realidade! Vou conhecer o Rio e quem sabe talvez, realizar até meu sonho de ir lá morar. Nada me prendia à Anápolis, meus velhos já eram falecidos, nunca me casara... filhos. Nada.
Foi assim que tomei meu ônibus para vir pra cá. Sabia que iria chegar numa parte feia da cidade, por isso contratei uma excursão para conhecer todo o Rio: floresta da Tijuca, Jardim Botânico, Alto da Boa Vista, Copacabana, Ipanema, Leblon, tudo... Até a Niterói eu fui porque sabia que era muito bela e podia-se vislumbrar o Rio de lá, inteirinho. Eu não me continha em ver tanta beleza. Essa cidade em maio... Não sei nos outros meses, mas em maio a luz aqui é lindíssima. Ademais, não faz frio nem calor. É perfeito. Devem estar me achando uma interiorana burra e deslumbrada. E eu sou mesmo. Mas não me importa, a vida não me deu muitas oportunidades de crescer, de ser alguém, e é verdade, devo confessar: eu nunca batalhei muito por isso. Fui me acostumando, me encostando e fiquei que nem planta sem luz: pequena, feia, sem viço ou seiva. Seca. Por isso, talvez, nenhum homem tenha se interessado por mim.
Chega! Chega de lamúrias, vou olhar a paisagem e beber do belo. Estávamos num ponto do Leblon que era deslumbrante, mais um pouco e subiríamos para São Conrado. Fiz sinal ao motorista indicando que queria descer. Eu só trazia comigo uma maleta de mãos, por isso ia ser fácil me locomover sozinha. Desci e sentei-me num banquinho para de lá ficar olhando o mar. Que imensidão, meu Deus! Depois fui devagarzinho caminhando até o final daquela praia.
Não sei como aconteceu. Subitamente, pessoas começaram a correr em todas as direções, fiquei parada sem entender nada. Não consegui reagir. Morta de medo. Quando olhei para o lado um menininho pequeno puxou uma navalha e veio em minha direção:
_ Pode passar tudo isso, tia. Vai passando e não me olha.
Agarrei com força minha maleta: tudo o que eu tinha, inclusive o dinheiro, estava guardado ali. Fiz menção de me virar para fugir. Nada feito. Me vi cercada por todos os lados. Crianças armadas de revólveres e canivetes. Tremia. Tremia tanto que deixei cair a maleta. Era o que estavam esperando. Agarraram minha maletinha e correram, correram tão rápido que quando pisquei estava tudo acabado.
Por que não escondera o dinheiro? Eu era matuta mesmo, uma boba. Que ódio tive de mim. Fiquei sem reação. Agora estava tudo perdido. Todos os meus sonhos foram embora. Desceram pelo ralo. É muito triste constatar que toda a sua vida se foi como num passe de mágica.
Sentei novamente no banquinho e chorei. Chorei de soluçar alto. Não sabia o que fazer. Chorei tanto que até um senhor aproximou-se de mim oferecendo sua ajuda. É. Ainda existe gente boa por aí...
Chorava e pensava: e agora? Meu sonho acabou... Fui andando pela areia ainda quente em direção ao mar. Só o vira de longe. Que força, que magnetismo. Que beleza! Ele parece nos atrair que nem imã. Senti-me completamente entregue. Nunca vira nada tão belo... Divisava o horizonte ao longe. Entrei na água. Fui andando até perder o pé. A lua já se insinuava a céu aberto, desabrida e voluptuosa. Fui andando até nos tornarmos uma coisa só: o mar e eu.

13 de set. de 2010

AMOR AOS 60

Os gestos são agora comedidos. As distâncias respeitadas. A privacidade de um e do outro, um bem com o qual não se brinca. Já não ateamos fogo às vestes por um atraso ou telefonema que se esperou e não veio. É assim. Não sofremos mais por qualquer coisa. Nem o coração bate disparado quando a campainha toca, no máximo ficamos inquietos.
É assim, mas eu juro que é bom. A serenidade veio para ficar. Assim como com nossa maturidade conseguimos enxergar o outro e respeitá-lo com suas qualidades e defeitos. Preferimos ficar a sós muitas vezes e o outro também. Aprendemos a curtir a nossa companhia assim como a companhia do outro. Aliais, só porque aprendemos a gostar da nossa solidão, podemos apreciar o outro em sua totalidade.
Já não somos crianças, há muito a adolescência se foi. Tivemos 30 e agora são mais 30. Todas essas épocas se bem vividas é que tornam os 60 anos uma idade radiosa. Vocês devem estar pensando: radiosa?! Ela deve estar maluca. Radiosa sim, ou vocês pensam que perdemos o tesão?! O tesão no outro e pelas coisas da vida.
Eu adoro me arrumar e ficar bonita pra quem me ame, ou mesmo que não, adoro ficar atraente pra mim. E me acho ainda bonita, sim. Sei que poderia dar uma “puxadinha” aqui, um botox acolá. Mas isso já não me deixa doente. Eu me aceito com minhas rugas e os cabelos brancos que teimam em aparecer de 15 em 15 dias. Nisso a moda não nos poupou. Em sua ditadura. Porque releva a barriguinha e os cabelos brancos dos homens, assim como a gordura? E nos quer sílfides, de cabelos sempre retocados.
Vocês querem ver como os 60 são legais? Essa ditadura conosco não é tão rigorosa assim. Ou eu pelo menos não me cobro esse rigor, além de achar lindo mulheres que assumem seus cabelos brancos.
Não sei se consegui explicar o amor aos 60. É difícil, quase impossível falar de amor generalizando. Escrevi o que sinto e como vejo o que vivo.
Uma última consideração, e essa bastante minha: não suportaria mais, dividir o mesmo quarto com ninguém. Perto, próximo, ótimo. Por uns dias, ok. Mas para sempre, não mais. Eu gosto demais da minha companhia e de dormir com meus cachorrinhos.

NOTA SOBRE "AQUI SE COME BEM"

O nosso querido chef Victor Nuno tem mesmo nos deixado chupando dedos, mas promete voltar essa semana de Manaus com receitas surpreendentes...

NOTA SOBRE "RECADO DO ZÉ"

Gente, o Zé Antônio não sumiu à toa. Ele está prepando um vasto material pra gente. Aguardem!!!!

NASCI PARA BAILAR

Esse conto é parte de um roteiro que deveria ter sido filmado, mas por questões burocráticas-financeiras brasileiras não saiu. O roteiro é uma adaptação que fiz baseada no célebre conto de Hans Christian Andersen, Os Sapatinhos Vermelhos.

João, vulgo Jana, seu nome de guerra, veio de Pernambuco, com vinte e poucos anos, tentar a sorte no Sul Maravilha. Homossexual assumido, em Pernambuco se virava como cabeleireiro, costurando, enfim, fazia de um tudo.
Muito cedo, fora expulso de casa, graças às suas preferências sexuais. Com um pai machista e uma mãe passiva, nunca teve um lar. Nunca se sentiu pertencendo a algo ou alguém. Alimentou anos a fio a fantasia de que alcançaria dinheiro, glória e sucesso quando se mudasse para o Rio, onde poderia exercer finalmente suas preferências sexuais, sem cerceamentos ou disfarces. Assim que conseguiu juntar um pé de meia suficiente para a mudança, "pegou um Ita no Norte e veio no Rio morar".
Aqui chegando, sem conhecer nada nem ninguém, com os poucos trocados que economizava, vagou de rua em rua, de hotéis baratos a miseráveis. Ouvira falar que era na Cinelândia que as coisas aconteciam. Que homossexuais como ele gozavam de liberdade, podiam se exercer por completo. Como sempre fora seu sonho trabalhar em teatros como figurinista e/ou cenógrafo, por lá aportou em busca de trabalho. Como seu dinheiro acabara, dormia nos bancos de praça enquanto batia de porta em porta à procura de emprego. Qualquer coisa servia desde que o permitisse estar perto do mundo do show business. Finalmente conseguiu trabalho no almoxarifado de um teatro por ali. Sentiu-se imediatamente aceito, encontrara seu mundo. Como não era uma pessoa com grandes ambições e se sentisse extremamente carente de afeto e acolhida, conformou-se nesse trabalho subalterno, por ali se sentir amado e estar entre iguais.
Mais importante que tudo, era necessário se sentia útil, era “Jana” pra cá, “Jana” pra lá, o dia todo e parte das noites, também.
Isso o preenchia e o enchia de orgulho.
Mas João, ou Jana, não era um ser sexualizado, muito menos promíscuo, talvez pela educação rígida e repressora de casa.
Suas fantasias eram de amor, de um amor profundo. De se entregar intensamente a alguém e vice-versa. Logo, logo percebeu que ao menos ali, isso não seria fácil. Todos os romances eram levianos e passageiros. Cansou-se rapidamente desse vai e vem e conformou-se à própria solidão.
Então, quando a noite caía, quando cessavam a música e os risos dentro do teatro, se recolhia ao seu quartinho, onde montara um gongá com seus santos de cabeça. Fazia ali suas obrigações ou lia romances melosos de M. Delly.
João era dono de um humor fino, sagaz. Não era mau, mas não resistia à ironia, à mordacidade. Isso o preocupava.
Sabia-se envelhecendo e temia acabar seus dias solitariamente, tendo como único prazer a crítica ferina, comprazer-se ridicularizando a tudo e a todos de forma destrutiva. Sabia que dessa forma acabaria aniquilando a si mesmo.
Foi quando uma madrugada ouviu, perto de seu quarto, um choro de bebê.
Acordou com esse choro. Pensou estar sonhando. Tentou dormir novamente, mas o choro persistia. Levantou-se, vestiu-se e saiu do teatro, caminhou em direção ao som.
Descobriu no chão, entre um carro e outro, uma cestinha, dentro dela, um bebê urrava provavelmente de fome. Foi extasiado que João tirou a mantinha que o envolvia.
Pegando o bebê no colo, de forma desajeitada, checou milímetro por milímetro, se ele nada sofrera. Mais extasiado ficou ao descobrir uma menina linda, vestida de forma pobrinha, mas que envergava reluzentes sapatinhos vermelhos; emocionantes sapatinhos vermelhos que se chocavam com a forma que fora vestida.
João enxergou naqueles sapatinhos, um sinal.
Aquela criança tinha nascido pra brilhar. Ela não seria mais alguém na multidão. Era uma predestinada.
João sentiu-se de certa forma vingado. Aquele bebê, um dia, realizaria todos os sonhos que ele tecera a respeito de si próprio.
Sua vida jamais seria a mesma.

8 de set. de 2010

TIM TIM!

Me chamo Cristal, quer dizer, isto foi um apelido que deram. Meu verdadeiro nome é Cristiane. Vim de uma família de lavradores do Sul. Pequenos lavradores. Minha família era pobre, mas tinha dignidade e honestidade... todos esses princípios morais que hoje não se usa mais. Todos dizem que sou bonita e deveria ter virado modelo, manequim como tantas outras moças lá do Sul. Mas a vida da gente nos reserva tantas surpresas! Conheci Alfredo ainda garotinha, numa festa em Blumenau onde ele tinha ido a passeio. Eu era quase uma menina. Ele se apaixonou por mim e foi conversar com meu pai, dizendo quem era e que suas intenções eram sérias. Pretendia se casar comigo, se papai não se opusesse. Papai vislumbrando uma vida melhor pra mim, concordou. Eu vislumbrando o Sul maravilha, topei. Mal sabia o que me esperava...
Minha profissão foi cuidar do Alfredo. Por vinte anos me dediquei a ele, agüentando seu mau-humor, suas grosserias e engolindo tudo, sem brigar. Sei lá, de alguma forma acho que eu lhe era grata por me dar uma casa, me feito ser sua mulher legítima. São coisas que eu prezo e de mais a mais essa foi minha formação: ser honesta e íntegra foi o que meu pai me ensinou.
Sofri muito esse tempo todo, chorava sozinha em meu quarto. Apesar disso não me deixei parar no tempo. Estudei muito, li à beça e fiz inúmeros cursos. Sempre fui ligada, Alfredo era tão ciumento que eu tinha que ter as aulas em casa, embora isso custasse o dobro. Ele não se importava porque estava milionário. Tinha uma banca de advocacia, quem conhece esses profissionais sabe do que estou falando. Mas foi correto comigo, como não tinha herdeiros, deixou tudo pra mim.
Quando ele morreu correu o inventário. Sem opositores, logo eu estava milionária. E me vi, da noite pro dia, sem saber o que fazer dessa fortuna toda. Logo, logo chegaram os “amigos”do Alfredo para me ensinar o que fazer do dinheiro. Posso ser interiorana, mas não sou burra. Nunca fui tão paquerada em toda a minha vida. Espertalhões, conheço essa laia toda. Através do Alfredo eu aprendi advocacia. Ha-ha.
Consultei a única pessoa no mundo que eu tinha confiança: papai. Ele me pediu um tempo pois iria falar com seu gerente e logo me daria resposta. Papai pode ser bronco, ter passado a vida com a mão na terra, mas é muito inteligente e sábio, coisa que hoje é matéria rara. Seu gerente logo abriu uma conta em meu nome na Espanha e me aconselhou a só gastar os juros, que mesmo eu morando fora daria pra viver super bem. Pensei em Madrid porque conhecia de cor seus quadros, seu cinema, e adorava sua música. Entre os cursos que fiz um foi aula de canto. E se eu podia escolher, por que não Madrid? De noite acordava sonhando, me via cantando em boites pequenas música brasileira.
Deus meu, eu agora era livre e sabia o quanto isso havia me custado. Depositei um bom dinheiro na conta da minha família que eram as únicas pessoas a quem eu era ligada. Tudo para mim será novo. Vou olhar as coisas como se fosse pela primeira vez, porque de fato é assim.
Eu não tive adolescência, mal tive infância trabalhando na lavoura. Meu casamento com Alfredo foi quase uma escravatura. Não. Foi uma escravidão de fato.
Pisarei no chão como os primeiros astronautas pisaram na Lua. Dá até medo. Será uma emoção após a outra. Tenho chorado muito, não sei se de felicidade ou tristeza. É tudo isso misturado. Agora de fato começarei a viver.
Quando estiver a bordo da primeira classe super luxo de um jato qualquer, eu que nunca saí do Sul ou do Rio, tomando meu champagne pra lá de merecido, lembrarei e hei de conseguir rir muito, pensando como o destino as vezes pode ser sábio, nas voltas que o mundo dá.
Peguei outro dia entre meus guardados essas anotações: Sem olhar para trás ir para uma cidade estrangeira de preferência onde não se conheça a língua. Me perder entre desconhecidos que amigos se tornarão.Sentir a angústia do não existir, existindo. Farei tudo minuciosamente ser mais uma na multidão e adquirir uma nova “persona”. Mas o melhor de tudo será abandonar o meu antigo eu, minha casa e tudo que vivi até então. Poder recomeçar do zero.
Afinal isso foi por mim sonhado tantas vezes, cada briga que tinha com Alfredo eu engolia os desaforos ouvidos, sabendo que um dia isto teria um fim.
Esse dia chegou finalmente: Movida madrileña, estoy a camiño! Sempre fui louca por Almodóvar! Tim, tim!

6 de set. de 2010

CANTO DOS AMIGOS

Soninha Toda Pura

Hoje, depois de mais de treze anos sumida, reencontrei Soninha.
Caminhava na Praia do Recreio com o seu filho, que aparentava onze anos.
Continuava bonita como eu me lembrava.
Ao seu lado o marido, um belo garotão tatuado, com uma prancha de surf e uma bicicleta, queimado por um Sol como ainda não se viu nestes meses no Rio.
Foi um belo e emocionante reencontro e ela me disse o que faz atualmente: É secretária executiva no Projac da Globo.
Conheci Soninha na década de 90, quando parávamos no mesmo estacionamento na cidade, ali na Av. Visconde de Inhaúma.
Eu tinha um Chevette e Soninha um Escort Sport do ano, super equipado, com a intrigante placa EDU 1945. Ela era atendente de caixa no antigo Bamerindus, que virou depois o HSBC e certamente pelo salário, escolaridade, e perfil familiar nunca poderia bancar tal extravagância. Ficamos realmente amigos, de dar carona um para o outro, quando nossos carros iam para revisão ou algum imprevisto surgia, tal como Soninha ficar sem dinheiro para a gasolina.
Não resisti a curiosidade e quis saber qual era a mágica para bancar tal carro e Soninha, toda pura, me contou seu segredo de polichinelo.
Eduardo (O Edu da placa), tinha se apaixonado por ela, apesar dos 25 anos de diferença de idade. Soninha, com toda sinceridade dos seus 22 anos me disse:
-“João, imagine você que só com o segundo grau incompleto, morando numa casa com meus pais, na Curicica, perto do Rio Centro, trabalhando como bancária, se eu tenho condição de bancar esta vida, este carro, minhas saídas, minhas roupas e tudo mais?”
-“Resolvi ser prática e namoro um empresário que é apaixonado por mim e resolvi ser a “Alfa2”. Aqui explico: Na época existia uma novela na TV que o personagem principal tinha a esposa (Alfa1) e a outra (Alfa2). Soninha disse isto rindo e explicou:
-“O Edu não sabe que ele é o Beta 1, pois tenho também o Beta2 e Beta 3!”
-“Não vejo nada de errado, pois sei que tudo é passageiro, mas enquanto isto, faço o que quero fazer e até ajudo minha família”. E contou-me uma estória interessante acontecida no Dia dos Namorados. Do Beta 3 ganhou um CD ,que repassou para o Beta2. Do Beta 2 ganhou um “Liebfraumilk”, insuportável vinho alemão doce (garrafa azul), muito popular na época, que repassou a Beta 1(Eduardo). De Beta 1 ganhou um anel com um pequeno brilhante que não repassou a ninguém. Todos ficaram felizes.
Todos comeram Soninha, (especialmente Beta 3 que nada ganhou, pois Soninha explicou que estava dura) e assim ela ia administrando sua micro empresa – Soninha Ilimitada!
A capacidade criativa e a logística de Soninha eram impressionantes, assim como o interior de seu carro que tinha roupas de ginástica, sapatos, mochilas, maquiagem e vestidos estrategicamente deixados na mala. Assim ela vivia a vida, pura, simples e feliz, sem conseguir ver nada de errado ou mau no que fazia. Alfa1 finalmente comprou um pequeno apartamento em Vila Valqueire para Soninha e aí, pela primeira vez minha amiga baqueou. O fantasma da liberdade perdida começou a incomodar e o desejo de Eduardo ter um filho e mudar de mala e cuia para o apartamento de Soninha, começou a deixá-la triste e sem vontade de continuar a viver daquele jeito.
A gota dágua aconteceu no dia que Eduardo, numa das inúmeras viagens da sua esposa, a levou para conhecer seu apartamento no Leblon e Soninha constatou que o seu apartamento em Valqueire era uma xerox mal feita daquele da zona sul, apesar de ter os mesmos horríveis móveis da Lacca na tonalidade vinho. Estranhei sua ausência no banco, na cidade, no estacionamento e uma semana depois me ligou e disse:
-“Repensei tudo, sai do banco, acabei com os três, devolvi a porra do apartamento de Valqueire, voltei a estudar e estou trabalhando como auxiliar de escritório numa empresa de publicidade.
-“Não dava mais para viver daquele jeito, quero mais para mim, quero escolher o que faço, o que compro, o que desejo.”
Ainda nos encontramos mais algumas vezes durante aquele ano e soube que iria tentar vestibular no ano seguinte. Passaram-se treze anos e fiquei feliz pelo reencontro.
O filho de Soninha (que por acaso se chama Eduardo) é do surfista, que é dono de uma loja de roupas esportivas. Soninha sorriu e me disse na encolha:
-“Imagina se meu marido soubesse daquela Soninha!”
Para mim, Soninha foi e é “A Soninha Toda Pura”, pois a coragem da mudança e sua força, assim o demonstraram. Longa e próspera vida Soninha e um beijo deste teu amigo.

João Siqueira
RUA DA MATRIZ – o pouco que consigo me lembrar

Para Anna Maria Assis

Me vejo em sonho. Brumas de antigamente. Estou sentadinha, ainda bem criança na escada de pedra que levava para o jardim de inverno, na casa do papai. Tudo o que restou dessa casa onde passei minha infância e adolescência foram escombros. Ninguém consegue construir no local. As energias que pairam por este local mágico são fortíssimas. As pessoas ainda não compreenderam isso.
A minha presença, assim como a da minha família, ainda deve estar muito intensa ali. Afinal, bela parte de minha vida passei ou pendurada na mangueira ou namorando no portão. Aquela mangueira, devem ter arrancado e feito dela pedacinhos, pois se esquecem que a natureza tem consciência, a gente pensa que não, mas tem vida própria e ela se vinga.
Tudo em nome do vil metal. E é a tal história, todo mundo é culpado, mas ninguém assume sua parcela. Estamos todos aí empurrando tudo com a barriga. Volto aos meus sonhos de antigamente e me vejo ainda criança brincando na rua (na época eram raros os carros, pelo menos não passavam por ali) brincadeiras de outrora. Duvido que alguma criança hoje conheça qualquer uma delas.
As crianças hoje já nascem informatizadas. Morro de pena. Não tiveram infância. Nunca brincaram de baleado, chicote queimado, amarelinha (atingir o céu...) e por aí afora. Meu Deus, eu era feliz e não sabia.
Da mangueira ao portão foi um pulo. Explicando melhor: de garota levada a uma quase adolescente que namorava no portão, não me lembro ter se passado muito tempo. Creio até que eu fazia as duas coisas simultaneamente. Ou minhas recordações assim o querem... Meu Deus, que época boa!
Época de família com filhos numerosos, que cresciam soltos brincando na rua. Tempo em que os garotos de “família” se irmanavam com aqueles dos morros. Quando a favela era pacífica e podia-se mesmo brincar por ali!
A bruma desce novamente e tolda minha lembrança... Estou novamente aqui e agora, na era cibernética em 2010, nesta cidade violenta. Seria bom viver só de lembranças... Queria tanto continuar sonhando... Acho que é por isso que escrevo...