29 de set. de 2010

CANTO DOS AMIGOS

VERDADE

Anna Maria Ribeiro

Aqueles que viveram os anos de chumbo certamente se lembrarão do filósofo e jornalista André Gorz. Seus livros eram proibidos por aqui e tê-los em casa constituía um grave delito, passível de prisão. Naquela época, este teórico da Revolução ainda não havia se voltado para ecologia, como fez anos mais tarde. Apenas dois livros haviam sido lançados em português antes do fatídico ano de 1969: “Estratégia operária e neocapitalismo” e “O socialismo difícil”. A partir daí pararam as edições, voltando a ser traduzido e publicado no Brasil somente em 1982. Sempre imagino quem seja o autor quando leio um livro. Não o aspecto físico dele. Mas ele mesmo, lá por dentro. André Gorz se revelara para mim enfarruscado e seco. Qual minha surpresa quando pelas mãos de minha filha, me chega um pequeno livro, o último que escreveu, intitulado “Carta a D.- História de um amor” . Não deve ser o mesmo Gorz, pensei. Um romance! Ele?! Minha filha esclarece: é ele mesmo, numa carta dirigida a sua mulher Dorine, em 2006, já bem velho. E me alerta: dá uma lida no primeiro parágrafo! E foi aí que me vi às voltas com um redemoinho de sensações entre as quais, vergonhosamente, percebi em mim a inveja! Muita inveja. Não resisto à tentação de provocá-la também nos homens e mulheres que me lêem e vou transcrevê-lo:
Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.
Devorei o livro em pouco mais de duas horas e ele perdura há dias dentro de mim provocando sensações por vezes dolorosas. Gorz levou cinqüenta e oito anos para dizer a Dorine a mais importante das verdades: o que ela significou em sua vida. E não foi do significar sentimento que ele falou. Foi do significar da pessoa dela em tudo que fez, em tudo que se tornou, em tudo que viveu. Em cada momento importante e em outros sem qualquer importância ela tornou sua vida plena, apenas sendo. Presença constante, calor de corpo, silêncio risonho, aceitação e até discordância. Ele não teria sido ele sem ela. Que bom que ele pôde dizer, que bom que ela pôde ouvir. Mas raramente é assim. Falamos a verdade mas não A VERDADE. Não percebemos que é preciso falar, falar e falar exaustivamente do que realmente existe entre dois próximos para que se possa entender o seu significado. Não é o “discutir a relação”, imagina! Longe disto. É tão maior: é o ser de cada um para o outro, tornando-se si mesmo só porque existe o outro. Confusa a frase; tão simples e claro seu significado. Perdi meu pai e meu filho no espaço de um ano. Convívio de quarenta e quatro anos com o pai e de vinte e um anos com o filho. E nunca disse a eles o quanto sou e quem sou por causa deles. Por todos os momentos em que existentes me fizeram ser. Falei, sim, e muito, a mim mesma, mas eles já haviam partido. Não disse a eles. Quando Rogério se foi fiquei com seus livros. Ele lia muito e tinha o hábito de marcar com um lápis passagens que chamavam sua atenção, fazendo pequenos comentários. Devorei estas marcas. Era ele me falando, se mostrando. Algumas me surpreenderam. Não devia, não é? Afinal era meu filho e eu o conhecia. Será? Não sei. Conversávamos muito sobre tudo, menos sobre nós. Por que não nos dissemos esta verdade? Privilegiados Gorz e Dorine. Daí a inveja do que não fiz e não poderei mais fazer. Nenhum dos outros livros de Gorz, tão completos, tão esclarecedores, ao contrário do que eu pensava, conseguiu me mostrar o que neste mundo mais se carece. Este tão pequeno, tão singelo, me mostrou: a paz serena e interna pela verdade do que somos pelos outros que fazem a diferença. Se todos a tivessem dentro de si, transbordaria, não é? Como transbordou para Gorz. E que extraordinário efeito este transbordar poderia causar neste mundo tão maluco e violento! O subtítulo “uma história de amor” quem sabe assusta pelo que pode conter de piegas e “dejá vu”. No entanto a verdade de Gorz é inédita. Não há frase, palavra ou significado que não transpire esta verdade de que estou falando e que para mim é nova e revela um caminho que nunca trilhei. Caminho que espero conhecer daqui por diante na companhia de meus filhos e de meus amigos. Vão eles, creio, se surpreender, no início desta caminhada, mas quem sabe, com o tempo, percebam que a paisagem vale a pena. E então, quem sabe, a gente vai ser capaz de se dizer o que importa, antes que este Deus esquisito e misterioso que é o Tempo, nos impeça.
Se esta crônica tiver o poder de fazê-los ler o livro não leiam o posfácio antes de terminar a leitura. Nele se desvenda o final desta história de grande e especial amor. Final que me traz a sensação de estar faltando uma bem aventurança entre as conhecidas: Bem aventurados os que juntos falam da verdade um ao outro porque eles serão especiais aos olhos dos homens.

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