22 de fev. de 2010

MARCADOS PARA VIVER



Este é um trecho do filme “Marcados para viver”, estreado em 1976, no qual fui roteirista, produtora e diretora e através do qual tive a imensa honra de alcançar o ‘título’ de primeira mulher brasileira a produzir um filme que chegou a Cannes, tendo chegado também ao Women`s Wer Festival, em NY. Com ele também fui muito feliz ao ganhar prêmios sendo o mais importante deles o de revelação como direção através da Crítica de São Paulo, pelo grande e saudoso Paulo Emílio Salles Gomes, o então presidente.

Mas, sobretudo pelo enredo do filme, que acredito que traga uma série de temas sociais, infelizmente, ainda e cada vez mais agudamente presentes na realidade do nosso país, como é a questão do individualismo, dos sub-mundos e as pessoas que dele fazem parte marginalizados por todo corpo social, etc.
A escolha do trecho se deve à presença da forte e super significante abertura de autoria do brilhante artista plástico Tunga e a belíssima música composta pelo amigo Francis Hime especialmente para esta história, e que carrega o mesmo título.
E por falar nisso Francis Hime lançou bem recentemente um CD dedicado às trilhas sonoras que produziu para o cinema brasileiro. No qual está presente não só a “Marcados para viver” como também outras belíssimas canções que com certeza eu recomendo e aguardo em breve o DVD!


17 de fev. de 2010

A PRINCESA DOS BOTEQUINS

Armei toda a sorte de loucuras e confusões só pra você prestar atenção em mim.
Bebi até cair. Queimei meu filme legal. E você nada. E você nem aí.
Cara, o que eu posso fazer agora, se você nem me quer?
Dói. Sabia? Dói muito. Dói dentro. E é ruim. É uma dor ruim. Que eu não mereço assim.
É que você não sabe. Você é a princesa dos botequins. Só dói em mim.
Aposto que você faz de propósito, só pra me machucar.
Um dia vou conseguir de verdade me vingar.

Uma no meio da multidão

Quem sou eu? É como me sinto, de repente, e bem no meio da rua. Sei quando começa, porque a sensação é de pavor, medo de desmaiar a frente de todos e ser ridicularizada.

Começo a suar muito e tremer. A taquicardia dispara e eu tenho minha visão comprometida. Vejo o perto às vezes longíssimo... e vice-versa. As noções de espaço e tempo, alteradas. As imagens contorcem-se e vejo tudo distorcido. E uma sensação de perda de identidade. As pessoas, assim, me parecem figuras de Francis Bacon e sou obrigada a me sentar em qualquer lugar para não cair. A sensação maior é de estar só e solta no mundo e sentir profundo pânico por isso.

Suo e penso. Penso e suo ao mesmo tempo alternadamente.

Ai, lá vem ele, o chofer redentor, mais um segundo e eu estaria estirada no chão, entregue ao olhar implacável e impiedoso dos passantes, aberta a visitação pública.


13 de fev. de 2010

Coisas

As coisas não são simplesmente coisas. Elas sentem, respiram, falam...

Você olha uma cadeira e pensa: e daí?! É só uma cadeira. E esquece que ela tem vida própria.

Por isso que a noite, tudo mais quieto, é que elas conversam...

É por isso também, que quando uma coisa desaparece você não entende. Cadê a caneta com a qual eu acabei de escrever? E esquece que como ela tem vida própria, quis passar essa vida longe de você e fugiu...

Poeminha

Embarquei no torvelinho que antecede o sono, uma vertigem divina que nos deixa leves e com os problemas todos momentaneamente superados. E nesse momento pensei: cansei de casar, agora só quero namorar.
Encho minha boca de sonho e sono para dizer mansamente...
Eu desejo, eu te desejo
Namorando assim mão na mão
Olhos nas estrelas
E a cabeça no céu...

8 de fev. de 2010

Abrace-me urgentemente


— Qual é a tua, pivete? Quem manda nessa porra sou eu! Vai procurar tua turma, filha da puta!

Ioiô leva uma banda do garoto que a faz rolar no chão. Sai resmungando: “Pô! Tá pensando que é o dono da rua? Eu hein!” Não tenta revidar, pois, além de saber que ele está certo, que ela invadiu o território inimigo, é apenas uma mulher, uma menina, portanto, um ser em permanente desvantagem. Na verdade, só queria mesmo era passar um bagulho rapidinho para descolar algum, uma grana que lhe permitisse comprar a bendita cola –crack seria um luxo. Quem sabe à noitinha? Coca só em dia de festa –algo que viesse aplacar aquela fome e o temor, ambos intensos. Sem opção, vai andando pela praia em direção ao Posto Seis, buscando que a sorte lhe sorria uma vez pelo menos naquele dia.

Ainda no começo, pára e dá uns tapas numa cachaça com uma galera amiga –coisa que sempre funciona. Enquanto caminha, pensa. Seu nome é Yolanda. Yolanda da Cruz. Sabe disso porque trouxe de um dos orfanatos a cópia da certidão de nascimento. Também lá, haviam dito que seu apelido era Ioiô. Explicaram –“explicação boba essa”, pensava- que ela vivia sendo jogada de um lado pro outro que nem um ioiô, com que todo mundo brinca, brinca, mas ninguém leva a sério, e acaba sempre esquecido em cima de um móvel. Mas é claro que isso se devia ao fato de se chamar Yolanda e nada tinha a ver com essa outra baboseira. No entanto, parecia verdade mesmo, pois, desde quando sua lembrança alcançava, havia passado por mais de mil famílias sem que nenhuma a quisesse, nem como ajudante de empregada. Sem falar nos orfanatos, vários... Era essa a razão daquela enorme vontade de morrer. De repente. Sentia sempre essa vontade. E o frio na alma. Que vida sem sentido a sua...

Estranho, mas conseguia se lembrar bem de quando era pequena, pequena mesmo. Antes disso tudo. Era uma menina especial, que possuía –era só dela- um anjo da guarda, seu anjo protetor. Ele lhe dizia coisas lindas só soprando ou sussurrando em seu ouvido. Falava do quanto era bonita e parecida com a mãe –linda e boa como ela. Vez por outra, ouvia o farfalhar de suas asas. Volta e meia conversavam, às vezes por horas seguidas. E também podia enxergar sua luz, que tanto a protegia. E ele a lhe segredar coisas. Havia trazido do orfanato, junto com a certidão, uma foto da mãe. Era lindíssima: usava os cabelos na altura do ombro, ondulados e vermelhos. Lembrava uma atriz de cinema que uma vez vira na revista: Rita Hayworth. Era tão bonita quanto Rita Hayworth. Ou mais. Mais. Sabia que seus cabelos eram vermelhos como os dela. Mas –“merda”- com tanta pobreza, tanta imundície, vivia tão cheia de piolhos que eles haviam começado a cair aos chumaços. Aí, rapara a cabeça. Melhor assim. Pareceria um garoto qualquer. Talvez também por isso a visão da mãe não lhe saísse da cabeça. E a inspirava –muito. Assim como seu anjo.

Difícil dizer como tudo aquilo terminara um dia. Foi de repente que se descobriu curiosa. A curiosidade pode ser uma bênção, mas, igualmente, grande maldição. Pode ser aliada, ou pior inimiga. Germina, dando seus frutos: quase sempre nos afasta de quem somos, independentemente de nós. No caso de Ioiô, foi a grande responsável pelo distanciamento da mãe e de seu anjo protetor. Quando essas duas figuras a abandonaram, sentiu-se irremediavelmente só.

Numa manhã, acordou com gosto de ressaca na boca, misto de cola, crack, tiner e cachaça barata. Foi afastando o papelão, ainda tensa com o dia que enfrentaria. Bendito papelão aquele que a protegia dos primeiros raios solares! Foi quando deu por falta do cobertor. Alguém tinha feito um ganho. Foi a gota d’água. “É hoje!”, pensou. “De hoje não passa. É bola ou búlica!”. Era um termo muito antigo que sua mãe lhe ensinara, segundo contava, ligado ao jogo de bola de gude. Era algo assim, Ioiô não se lembrava muito bem, mas adorava repetir: “É bola ou búlica”. Achava aquilo muito chique.

Pela primeira vez, em anos, sentiu a presença da mãe e de seu anjo protetor. Mas agora era diferente. Além de intuí-los mais perto que jamais, eles pareciam chamá-la: “Venha! Junte-se a nós!”. Era tudo o que Ioiô precisava ouvir. Decidiu: “De agora em diante, será tudo ou nada. Hoje será diferente. É bola ou búlica”. Agia como suicida. Sabia sê-lo. Mas, uma vez na vida, nem que fosse a última, mudaria o jogo –as regras do jogo. Só para variar, viraria tudo do avesso. Não sabia o porquê, mas agora nada mais importava. Viera para perder, e o jogo acabara. Isso não deixava de ser um ganho, afinal.

Conscientemente, caso pensado, voltou ao território inimigo e comprou a cocaína mais cara da praça. “Coisa fina, da boa”. Olharam-na com desconfiança quando entregou todo o dinheiro que juntara. Saiu teatralmente, andando empinada. Devia lembrar um galinho de briga, sabia estar ridícula. Passou a mão numa cachaça de encruzilhada, foi em direção a Niemeyer. Lá, com um estilete, abriu a porta da camionete estacionada no declive. Pensou que seria interessante ficar ali escondida, bebendo e cheirando. Deitou no banco –“macio...”- esticava as fileiras no chão, enquanto bebia.

Repentinamente, deu-se conta do tamanho do desespero guardado no peito. Berrava: “Nasci na banda podre do mundo, claro! Nascer no Brasil é pra pagar. Ninguém nasce aqui à toa. É pra purgar, pagar, porra! Deus escolheu isso, aquele filho da puta! Fez de propósito: se esqueceu de mim! Escroto!”. Soltou um grito lancinante. Todos os seus demônios pareciam sair-lhe garganta afora. Cuspia fogo. Vomitava ódio. Cão sem dono, bebê sem mãe, loba em desespero, seu uivo alcançou a lua, toldou estrelas, perdeu-se no néon. Ioiô virou néon, sumiu por entre os anúncios luminosos que piscavam. Poeira de estrelas que ela costumava observar, doidona, deitada de costas na areia. Finalmente amor e perdão infinitos.