15 de abr. de 2010

UM CONTO TRISTE

Eu não queria escrever agora, mas esta história se impôs. Escrever deve ser assim, imagino, trazer essa premência, essa urgência no existir. Quando as palavras e as personagens têm vontade própria e tomam conta de nós, tudo o mais se esvai tornando-se vazio. Eu inventei Érico e imaginei para esse conto milhares de títulos, nenhum bastante convincente. Dizer que criei Érico não é verdade, pois ele existiu e era de carne e osso, mas talvez devesse continuar nessa zona difusa entre a realidade e a fantasia, onde não existem nomes ou é necessário que se nomeiem as coisas.
Caminhei por esse espaço algum tempo, nele mergulhei, tanto que como disse antes, era-me impossível dar um título a esse conto. Pensei em “Um conto lastimável”, “Um conto triste” ou “Um conto de equívocos” e também “Uma história banal”. Isso é para que se tenha noção de quanto tudo dentro de mim ainda se delineava. Mas como deveria dar um nome ao ser que o habitaria, decidi-me por chamá-lo Érico.
Um nome antigo para um personagem arcaico. E agora, de repente, nessa premência a que me referi, tomei consciência de quanto naquele dia o senti triste e abandonado. Porque o percebi passado?
Acredito que um homem que freqüenta Matinês deva ser de outras épocas e por que não? Viúvo. Um vetusto viúvo e aí temos um quadro perfeito de Érico. Dito assim há de se imaginar que a história que agora se inicia trará algo de grandioso, mas essa é uma história banal, beira o vulgar. Numa dessas tardes em que ia ao cinema somente para preencher minhas lacunas, meu vazio, minha carência, fotografei Érico assim que chegou. Afinal, nos parecíamos. Vi-me refletida nele, dois seres a margem, solitários que não tem vida própria e se preenchem da vida alheia, no caso, um filme. Érico não me chamou atenção especial, fotografei-o por fotografar. Tenho esse hábito – gosto de observar sem que me saibam – sempre gostei de filmar. E ali, por sermos só três pessoas naquela sessão de cinema vazia, foi fácil por exclusão prestar atenção nele, o outro homem não exibia peculiaridades interessantes, Érico, sim. Percebi de imediato o quanto era metódico, pois tão logo chegou dirigiu-se à bilheteria e apesar de saber que assistiria a um filme quase que absolutamente só, fez questão de marcar seu assento. Não entendi aquilo. Deve ser uma espécie de louco, sofre da doença do pânico, quem sabe...
Pensei em mais tarde consultar meus alfarrábios Freud de psicanálise. Mas naquele momento abstrato ele ainda não tinha um nome, e era apenas um de nós querendo assistir a uma vaga e improvável sessão de cinema. E mais: ele não deveria ter um nome, como vocês verão mais tarde, me dando razão. Mas sou desastrada assim e atropelo coisas e pessoas, eu mesmo me embrulho. Que tristeza...
Essa forma de viver só dá margem a erros: entramos na sala Érico (que seja, ainda não me acostumei a esse nome), um outro cidadão e eu. Como é hábito aqui no Rio, o lugar estava um gelo mesmo antes de o filme começar. Comentamos o frio, somente nós dois, o outro homem havia ido se sentar filas adiante de nós. Falei que ia me queixar na bilheteria e feito isso, voltei.
Como vocês estão vendo, tudo até então trivial. Érico sentado em seu lugar marcado e eu cadeiras distante dele, mas ao seu lado. Esqueci de dizer que estava muito bonitinha. Bem maquiada e vestida para um compromisso que teria mais tarde. Tentarei encurtar ao máximo essa história melancólica, por pena de mim que a escrevo e de vocês que a lerão. O filme era terrivelmente ruim. E já que havia falado, começamos a trocar idéias. Érico, animado com nossa conversa foi se aproximando cadeira por cadeira. Eu, completamente despreparada para o que poderia acontecer, tentava assistir ao filme. Quando dei por mim ele estava ao meu lado e perguntava se eu morava ali, conversa vai e vem. Falei de sua tristeza e abandono, mas não sei se comentei que ele me parecera alguém confiável, também.
Enfim, julguei que após aquela conversa descompromissada ele fosse me dar seu cartão e ficássemos amigos. Mas inesperadamente ele pegou na minha mão. Foi um choque para mim, um balde de água fria em nossa “possível” amizade. Como uma flecha, puxei minha mão e olhei fixamente para a tela. Senti nele um imenso pudor. Uma devastadora vergonha no existir. E tive pena e tristeza por tudo acabar assim. Dois personagens tão solitários como nós merecíamos uma melhor sorte. Ele inventou desculpas, disse que ia ao banheiro. E sumiu. Sei que nunca mais irei vê-lo. Porque deveria? Nós só nos cruzamos para criar esse conto e para que escrever viesse a ter razão de ser.

3 comentários:

  1. A Santa Guerreira Sem Contos Tristes


    Querida Rosário
    Acordado pelo foguetório festivo de um balão nesta madrugada de sexta, comemorando sabe-se lá o que, não tenho outro jeito senão começar o meu dia lendo os jornais pela internet.
    Comecei pelas notícias do Rio com as tragédias de sempre, passei pelas notícias do Brasil, para a chuva que agora está na Bahia, para as notícias de ciência, para o vulcão que impede os voos na Europa,parei um pouco para ler os e-mails (nenhum teu,infelizmente) e escrever .
    Olho o tempo lá fora e há um prenúncio de sol para o fim de semana e para o feriadão .
    E aí vi seu novo texto no Blog , e por tudo que já viveu e passou e às vezes ainda passa, penso que é uma verdadeira Santa Guerreira (uma Joana D'Arc seculo XXI,sem os delírios da original).
    E quem sabe hoje ,ou amanhã ou depois,uma nova sessão de cinema aconteça e alguma outra alma errante se aproxime?
    Pelo sim, pelo não, este são meus desejos para alguém que continua, com suas atitudes e pensamentos, matando os dragões da maldade.
    Pelo que vejo,as vezes você se isola e, calmamente, vai mudando as coisas na vida,tendo a companhia fiel de Gipsy,mas sempre sintonizada com o mundo.
    Sua escrita é o seu castelo dentro de algum feudo medieval, que surge a cada momento que um conto aparece . Este sempre será o segredo.
    Uma Santa Guerreira e um Dragão que não é o da Maldade.
    Beijos do João.

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  2. É.É muito triste e belo esse conto!Janaina Duarte.

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  3. ...é, fica dando mole no cinema? No escurinho do cinema? Assustou? Alguns homens chegam derrepente, vc ali, ele tb, por que não, deve ter achado oportuno. Erico vive v nos cinemas, caçando mulherers nas matines. Esse eu já conhecia, voce quase virou presa nas garras velhas desse vulto anonimo que te desejava! Derrepente vc perdeu uma oportunidade ou se livrou da morte... quem sabe?
    Fernando Scarpa

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