13 de set. de 2010

NASCI PARA BAILAR

Esse conto é parte de um roteiro que deveria ter sido filmado, mas por questões burocráticas-financeiras brasileiras não saiu. O roteiro é uma adaptação que fiz baseada no célebre conto de Hans Christian Andersen, Os Sapatinhos Vermelhos.

João, vulgo Jana, seu nome de guerra, veio de Pernambuco, com vinte e poucos anos, tentar a sorte no Sul Maravilha. Homossexual assumido, em Pernambuco se virava como cabeleireiro, costurando, enfim, fazia de um tudo.
Muito cedo, fora expulso de casa, graças às suas preferências sexuais. Com um pai machista e uma mãe passiva, nunca teve um lar. Nunca se sentiu pertencendo a algo ou alguém. Alimentou anos a fio a fantasia de que alcançaria dinheiro, glória e sucesso quando se mudasse para o Rio, onde poderia exercer finalmente suas preferências sexuais, sem cerceamentos ou disfarces. Assim que conseguiu juntar um pé de meia suficiente para a mudança, "pegou um Ita no Norte e veio no Rio morar".
Aqui chegando, sem conhecer nada nem ninguém, com os poucos trocados que economizava, vagou de rua em rua, de hotéis baratos a miseráveis. Ouvira falar que era na Cinelândia que as coisas aconteciam. Que homossexuais como ele gozavam de liberdade, podiam se exercer por completo. Como sempre fora seu sonho trabalhar em teatros como figurinista e/ou cenógrafo, por lá aportou em busca de trabalho. Como seu dinheiro acabara, dormia nos bancos de praça enquanto batia de porta em porta à procura de emprego. Qualquer coisa servia desde que o permitisse estar perto do mundo do show business. Finalmente conseguiu trabalho no almoxarifado de um teatro por ali. Sentiu-se imediatamente aceito, encontrara seu mundo. Como não era uma pessoa com grandes ambições e se sentisse extremamente carente de afeto e acolhida, conformou-se nesse trabalho subalterno, por ali se sentir amado e estar entre iguais.
Mais importante que tudo, era necessário se sentia útil, era “Jana” pra cá, “Jana” pra lá, o dia todo e parte das noites, também.
Isso o preenchia e o enchia de orgulho.
Mas João, ou Jana, não era um ser sexualizado, muito menos promíscuo, talvez pela educação rígida e repressora de casa.
Suas fantasias eram de amor, de um amor profundo. De se entregar intensamente a alguém e vice-versa. Logo, logo percebeu que ao menos ali, isso não seria fácil. Todos os romances eram levianos e passageiros. Cansou-se rapidamente desse vai e vem e conformou-se à própria solidão.
Então, quando a noite caía, quando cessavam a música e os risos dentro do teatro, se recolhia ao seu quartinho, onde montara um gongá com seus santos de cabeça. Fazia ali suas obrigações ou lia romances melosos de M. Delly.
João era dono de um humor fino, sagaz. Não era mau, mas não resistia à ironia, à mordacidade. Isso o preocupava.
Sabia-se envelhecendo e temia acabar seus dias solitariamente, tendo como único prazer a crítica ferina, comprazer-se ridicularizando a tudo e a todos de forma destrutiva. Sabia que dessa forma acabaria aniquilando a si mesmo.
Foi quando uma madrugada ouviu, perto de seu quarto, um choro de bebê.
Acordou com esse choro. Pensou estar sonhando. Tentou dormir novamente, mas o choro persistia. Levantou-se, vestiu-se e saiu do teatro, caminhou em direção ao som.
Descobriu no chão, entre um carro e outro, uma cestinha, dentro dela, um bebê urrava provavelmente de fome. Foi extasiado que João tirou a mantinha que o envolvia.
Pegando o bebê no colo, de forma desajeitada, checou milímetro por milímetro, se ele nada sofrera. Mais extasiado ficou ao descobrir uma menina linda, vestida de forma pobrinha, mas que envergava reluzentes sapatinhos vermelhos; emocionantes sapatinhos vermelhos que se chocavam com a forma que fora vestida.
João enxergou naqueles sapatinhos, um sinal.
Aquela criança tinha nascido pra brilhar. Ela não seria mais alguém na multidão. Era uma predestinada.
João sentiu-se de certa forma vingado. Aquele bebê, um dia, realizaria todos os sonhos que ele tecera a respeito de si próprio.
Sua vida jamais seria a mesma.

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