6 de jan. de 2010

“TI-TI-A”

Minha forma de vestir me traduz, sou disciplinada, regrada, metódica. Minhas roupas refletem isso. Minha empregada, a Maria, uma crioula gorda adorável está incumbida de engomar bastante minhas blusas sempre irretocavelmente brancas e minhas saias plissadas. Tudo em mim recende à limpeza. Essa é minha imagem e eu cuido dela com carinho. Nunca me casei, não suportaria dividir o mesmo teto com ninguém, já a cama divido com prazer, pois sei ser o sexo coisa passageira. Quer dizer, isso era o que eu pensava, a vida me provou o contrário.

Tenho duas grandes paixões, o português que ensino e a astrologia que estudo. Meu mapa astral está em ordem e eu o consulto diariamente e nada nele apontava a tragédia que se abateria sobre mim.
Naquela manhã eu corrigia provas, distraída quando fui acordada daquela semi-sonolência por uma voz forte de homem.
_ Aí, ô tia, mamãe falou pra eu falar com a senhora depois da aula.
Olhei o garoto de alto a baixo, como “aquilo” podia ser meu sobrinho?
Sou virgem, ascendente em virgem e Lua em virgem, ou seja, para quem não entende de astrologia: terra sobre terra sobre terra. Uma personalidade pé no chão. Só rindo mesmo.
Tirei meus óculos para observar melhor, aquele que se dizia meu sobrinho e senti um frio me percorrer a medula. Um pressentimento animal junto a minha voz interna alertavam para o desastre. Algo dizia que aquele encontro seria portador da tragédia. Registrei esse sentimento, mas fui em frente, aliás, não me restava mais nada a fazer àquela altura das coisas.
-Você é filho de quem?
-Da Ignez. Ela disse que não vê a senhora há muitos anos.
-É verdade! Ela vai bem?
Como prever o desatino? É tudo tão improvável que nem mesmo o mais tarimbado guru, é capaz, creio eu. Como imaginar que em pouco tempo sua vida inteira será tomada pelo desejo? Desejo puro, desejo latente, que pulsa, não tem medidas e não admite meios termos e te transforma num joguete.
-Em que posso te ajudar, meu filho?
-Sabe o que é, tia?!
Esse “tia” soou-me diferente, algo nele anunciou perigo iminente. E o tom em que foi dito denunciava uma ponta de sarcasmo.
Observei-o melhor. Tirei os óculos para tal. Meu sobrinho era 1.80 de puro sexo cabelos em desalinho e lábios carnudos.
Tudo nele recendia a sexo. Transpirava isso. Ele ardia, somente não sabia.
Mas eu, com meus 60 anos de estradas e travessias, ansiava por mostrar-lhe.
Devagar, Lúcia, devagar. Ele é apenas um menino. Será? Antes que eu pudesse concluir, ele veio atropelando pensamentos.
- É o português, tia. Eu ando muito mal e sei que a senhora poderia me ajudar.
O interessante é que ele não era meu aluno, talvez fosse da classe ao lado.
Nada disso tinha importância. Igor surgia para semear o caos e tornar minha vida imprevisível, felizmente.
Algo me alertava: não ultrapasse, cuidado. Muito tarde para avisos e eu ansiava por viver perigosamente. Toda a minha antiga rígida rotina sempre resistira ao menor sinal de vento. Como seria quando viesse o vendaval?
Combinamos um reforço do Português em minha casa depois das aulas. Devo confessar que esperei ansiosamente por Igor em nosso primeiro encontro. Minha irmã Ignez sempre foi excêntrica e nutria verdadeira paixão pela Rússia, daí sua preferência por nomes estrangeiros.
Sentei-me com ele à mesa de jantar, repleta de livros e cadernos. Foi patente o desinteresse de Igor por estudar desde o começo. Vou além, se eu não fosse uma mulher equilibrada, imaginaria que tudo aquilo, as aulas particulares, a insistência para que fossem lá em casa e não na escola não passavam de “armação” só não saberia dizer com qual intuito. Um anarquismo juvenil sem fim definido, certamente.
Uma tarde o desastre que aos poucos se formava veio como uma avalanche arrastando tudo a sua volta. Eu devo ter dado inúmeras mostras de meu interesse por ele, sou transparente, eu sei.
Estava distraída na cozinha quando senti-me enlaçar por trás. Dali para a cama foi um pulo. Minha vida sexual sempre foi plena. Mas não me lembro de ter jamais tido uma relação como a daquela tarde. Eu nunca mais fui a mesma, também. Minha vida foi arrastada de roldão junto com o sexo. Mas porque, meu Deus? Por quê? E porque eu, uma metódica professora? Porque logo eu? A vida é uma escola. O que estava tentando me ensinar?
Igor veio semear o caos onde reinava a ordem. Veio para me virar de ponta-cabeça. Em pouco tempo eu me submeteria a toda a sorte de humilhações, só para ter seu corpo jovem junto ao meu. E confesso mais: adorando ser feita gato e sapato. Até onde pode levar o desejo... Mas aquele não era um desejo normal, tinha sua origem na tara mais baixa que o que eu jamais conhecera. E o pior de tudo: com minha total concordância.
Em todas as nossas “transas”, ele fazia questão de me humilhar das mais diversas formas, ora me obrigava a ir rastejando implorando por mais sexo. Ou me chamava de “tia” de um jeito debochado. Fazia referência ao meu corpo de maneira abusiva comparando-o com as “gatinhas” suas namoradas.
Eu já não fazia nada mais direito. As aulas que eu prezava tanto eram dadas de forma irresponsável. Enfim, nunca mais fui ou seria a mesma.
Uma tarde deu-me um ultimato, ou eu fazia um ménage à trois, a popular “suruba”, ou ele pulava fora. Louca de paixão, topei. Mas ao concordar já havia engendrado um plano. Sabia que não poderia continuar vivendo daquela maneira. E não poderia errar. Quando nossa “transa” atingiu seu auge, fui até o escritório sem que eles pudessem perceber e peguei o revólver. Todas as humilhações engolidas, toda a vergonha passada veio à tona. Uma explosão com rumo certo. Eu não poderia tolerar mais um segundo daquela situação vexatória, não suportaria mais um instante aquilo.
Eles também não se aperceberam da minha volta tão entretidos estavam.
- Basta, garoto. Agora quem manda aqui sou eu.
Colocava-me a uma razoável distância deles, deixando sempre os dois na mira. Igor e a garota demoraram a realizar o que estava ocorrendo.
- É isso mesmo. Agora sou eu quem dá as ordens aqui. Reiterei:
- Os dois aí, rapidinho de quatro no chão se não quiserem levar bala.
- Rasteja, filho da puta e leva essa putinha para rastejar com você. Assim, é pouco. Quero rastejando como o animal peçonhento que você é. Assim, assim, assim tá melhor.
- Ninguém se mexe, sem que eu mande. O jogo virou, viadinho. Agora, seu merdinha, fala quem é a titia aqui?! Fala assim dobrando a língua.
- Titia. Titia. Titia. Repete comigo, ti-ti-a. Agora dobra a língua e respeitosamente diz: senhora, minha tia. Isso, garoto. Agora está melhor. Pede perdão, viado, por tudo que você me fez passar. Chega de merda! Basta de falação, Lúcia. Pro inferno com tudo!
E soltei a última e melhor gargalhada de toda a minha vida.


Rio de Janeiro, 30 de setembro de 2009.

5 comentários:

  1. este teu conto e uma maravilha, verdadeira obra-prima.

    a musa do francis, marcia denser nao escreveria melhor.

    parabens!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

    ResponderExcluir
  2. Super bem escrito, parabens!!!!
    beijos

    ResponderExcluir
  3. Muito bom, Rosário! Gostaria de conversar com você sobre este conto. Gostei demais e acho que merece uma burilada em alguns trechos. A personagem é excelente, a história ótima e muito bem estruturada e a "tia" merece um antagonista a altura e este, que você alinhava bem, pode melhorar ainda mais. Você não imagina como gostei!

    ResponderExcluir