FOLHETIM
Tinha sido mais uma noite infernal no conjugado que Nestor morava na Rua Taylor, perto dos Arcos da Lapa.
O calor, a dor de cabeça e o barulho do pardieiro vizinho, onde vivia uma bicha velha que fazia michê, não o deixara dormir.
Talvez fosse a fome, talvez a ansiedade do dia seguinte, não sabia bem, mas o fato era que olhava para o despertador barulhento ao lado de sua cama e as horas, torturantemente, não se escoavam, como num ralo represado por planos, perguntas e decisões.
Deixou de lutar com a insônia e refez, mais uma vez, o meticuloso plano que há meses arquitetava. Amanhã seria o dia.
Amanhã receberia sua aposentadoria, aquela merreca, que só dava para pagar a porra do aluguel, comprar uns poucos remédios, alguma comida, e de vez em quando um vinho verde, Gatão, que lembrava os bons tempos que passara com sua amada Maria das Mercês.
Há muito Maria das Mercês havia partido, ou pelo menos era isto que Nestor sentia, mas no íntimo sabia que, com a partida dela, houve também o alívio, pois a traição de Maria matava-o dia a dia.
Sozinho, apartado da família, continuava morando na Lapa, que ainda era o referencial afetivo de toda uma vida.
Atualmente desconhecia o paradeiro da sua outrora querida Mercês.
Lembrava de Maria adolescente, caminhando numa Cinelândia mágica, onde o velho Odeon foi testemunha dos beijos roubados no cinema.
Lembrava do Bar Amarelinho, onde comemoraram o primeiro mês de namoro, da Igreja Santa Luzia, onde casaram, e mais recentemente lembrava com uma dor no peito da Confeitaria Colombo, onde finalmente ele e Maria, depois de uma longa briga, despediram-se.
Não, hoje só queria lembrar de coisas boas.
Amanhecia, e o dia indicava sol ameno e tranqüilo.
As árvores da Avenida Beira Mar balançavam suavemente com a brisa que vinha da Baía da Guanabara, mas logo a direção dos ventos mudaria.
Nestor sorriu tristemente, imaginando o transcurso daquela longa manhã. Milhares de vezes havia sonhado com todos os detalhes: o que faria antes, durante e depois, quem saberia? Só sabia que aquele era o dia.
Afinal, se hoje estivesse com Maria, comemorariam mais um aniversário de casamento.
Levantou-se, tomou um banho frio, pois estava sem gás, fez a barba, observando os sulcos de tensão que seu rosto magro exibia, colocou o terno usual, meio surrado, mas ainda usável, pegou uma sacola de compras, ajeitou o cabelo, soltou o canário belga, último amigo que tinha, riu da sua própria cara, desceu as escadas e abriu a portaria com cuidado redobrado, para passar invisível por todos, pois assim era sua vida recente.
O banco, o sonho e o destino espreitavam lá fora pelo começo da manhã, e Maria das Mercês, quando soubesse, não ficaria decepcionada.
De onde ela estivesse veria do que ele era capaz.
Por muito tempo, recolhido na sua mansidão, tinha ouvido Mercês recriminar o seu jeito calmo, conformado e humilde com que levava a vida.
Na última briga ela falara claramente, tentara até explicar com isto, a sua própria traição.
Era só uma questão de tempo, horas, poucos minutos, e a Lapa e todo o Rio saberiam de um novo Nestor. Pena que não podia divulgar para mais ninguém, mas a alegria e o prazer íntimo contaminavam o seu rosto esquálido com um sorriso.
Sabia que era o dia, pois tinha sonhado com a data.
Estava escrito há mil anos atrás.
Libertou-se do prédio, das angústias e da insegurança.
As pessoas, os carros, as lojas, as manchetes do jornal barato passavam como em câmera lenta, num tempo defasado da sua própria velocidade.
Viu uma foto premonitória na “Luta Democrática” e sentiu um arrepio. Viu também a agência do seu banco na Cinelândia, perto da ABI, que estava abrindo as portas.
Cumprimentou, sem ver, o segurança do banco e, pacientemente, esperou sua vez de ser atendido no guichê quatro, conforme o sonho predizia.
Ao escutar o seu número de senha estremeceu, suspirou e partiu decidido, mas calmo, para o nascer de um novo Nestor.
No bolso uma navalha alemã, meio enferrujada e fria, aguardava.
Já passava de meio dia quando o corpo de Nestor foi recolhido ao Instituto Médico Legal. A maçaroca de notas que o caixa do guichê quatro havia colocado na sacola de compras incrivelmente ainda não havia sumido. Exatos 245 cruzeiros em notas de 5, 10, 20, ainda manchadas pelo sangue A Positivo e pelos dois tiros de calibre 32. Esvaziado o paletó foram ainda arrecadados:
Uma foto em preto e branco de corpo inteiro de Maria das Mercês, a certidão de casamento, um lenço Paramount, um pente Flamengo, um chaveiro com a bandeira do Brasil, um cortador de charutos, uma imagem de São Judas Tadeu, e uma caneta Parker de ouro.
Um bilhete enigmático, para os focas de plantão nas redações e também para a Polícia, foi encontrado:
-“Querida, não aguentei mais. Eu te perdôo!”.
Os números 3030 e 13 apareciam escritos no canto do bilhete.
João Siqueira
Querida Rosário
ResponderExcluirSua gentileza e carinho em publicar no seu blog meus escritos me deixa feliz e comovido.
Beijos do João
Amei,João! É um pedaço de literatura. Da "boa"
ResponderExcluir"literatura me dá esperança de um dia poder fazer o mesmo.Obrigada.ANA.