29 de dez. de 2009

Rua da Matriz – A mudança...

Tudo parecia-me um delírio. Quantas descobertas, quantos esconderijos... o sótão... o porão... a casa cheia de mistérios...

Mamãe conseguiu povoá-la de estranhos santos, terríveis imagens que principalmente à noite me aterrorizavam, me tirando o sono. Mas logo, logo, chegava a manhã, com sol e pássaros cantando, era a descoberta da liberdade, de uma tênue possibilidade de um dia ser feliz.
A rua e seus personagens... acho que os poderia chamar assim, já que de dentro do meu autismo não conseguia ver “pessoas”, não como realmente elas eram. Só enxergava alguém ou alguma coisa quando ela se relacionava estreitamente comigo. Mesmo assim com enorme dificuldade. Eu era certamente a criança mais auto-centrada que acredito ter conhecido. Apesar disso consegui reconhecer naquele estreito espaço de concreto, “pessoas”, mas isso, isso foi pouco a pouco. Arrumei uma amiga. Amiga? Não sei se poderia chamá-la assim. Pois eu também não a via em sua totalidade. Enfim, ela era como minha sombra, ia aonde eu ia, me ouvia falar, fingia ou realmente me entendia? Ela fazia parte de uma família enorme, eram ao todo doze crianças. Famílias como as dela pareciam proliferar ali. Numa outra casa moravam quatorze crianças, e numa outra, doze. Era certamente muito divertido. Carros não passavam com freqüência naquela rua. As crianças se reuniam para jogar futebol, para jogar baleado à tarde. Algo assim como hoje em dia só pode acontecer no subúrbio, ou em cidades do interior. Eu ficava deslumbrada com a alegria e a generosidade daquela gente. Elas simplesmente “viviam” sem muito questionar ou aparentar grandes sofrimentos. Pelo menos era assim que eu as via. Nunca se sabe... toda e qualquer pessoa é uma esfinge. Enfim, era como se a vida me penetrasse pouco a pouco. Eu não sabia direito como, mas tinha a nítida sensação que daquela forma, através daquelas pessoas, conseguiria talvez salvar-me. Salvar-me de quê? Nem eu mesma sabia direito. Da “loucura”, da “morte interna”, talvez. Em todo caso, nada passava por mim impunemente. Era sempre um longo sacrifício. Algum estranho desejo de sobrevivência começava a tomar conta de mim, eu “precisava viver”, e não sabia como.

2 comentários:

  1. muito triste, mas muito lindo.tua infancia lembra a minha...uma profecia autista, uma solidao interminavel......livros, so eles, nos salvariam.
    e assim foi.

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  2. Essa é a Rosário que eu esperava! Escritora, poeta sensível e super inteligente desde pequena..
    Virei seguidora do Blog.
    bjus, mtos bjus

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